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De Volta a o Éden


ÍNDICE


Introdução De volta ao Éden

Capítulo I
Adão, Eva e algo mais...
Um mundo além do bem e do mal

Capítulo II
 O conto das duas árvores
As árvores se contradizem?
O Jardim do Éden e o Princípio da Incerteza de Heisenberg
Querubins com a espada flamejante

Capítulo III
O lado escuro do Paraíso
O que nós sabemos sobre a serpente?
Uma “tentação” curiosa
Ser como D-us

Capítulo IV
 A verdade nua
A estranha proeminência da nudez
Uma nudez oculta
Um engano “inocente”

Capítulo V
 Os motivos da serpente
A árvore dos desejos
A serpente “nua”
A bela e a fera

Capítulo VI
 Um mundo de brócolis e pizza
Do que é feito o verdadeiro conhecimento?
Certo e errado de fora para dentro
Escolhendo entre o brócolis e a pizza
Todos os dilemas morais são idênticos?

Capítulo VII
 Um boxeador chamado 'Desejo'
Uma luta contra o irreal
Os jogos mentais do desejo
Os princípios do desejo

Capítulo VIII
 O olho daquele que contempla
Há um modelo aqui?
As peças que faltam no quebra-cabeças

Capítulo IX
 Friedrich Nietzsche e o D.J.
Torá e o tempêro da vida
O advento do desequilíbrio
Um medo recém-descoberto
O preço do poder

Capítulo X
 “Onde estás?” A primeira pergunta da História
Dons gêmeos
As roupas de Adão e a sepultura de Moisés
1


INTRODUÇÃO
De Volta ao Éden
Adão, Eva e a serpente são familiares para nós desde a tenra
infância, entretanto o sentido dessa história parece por demais elusivo. Por
exemplo, por que será que D-us proibiu comer da árvore do conhecimento do
bem e do mal? Será que Ele não queria mesmo que a humanidade estivesse
apta a distingüir o certo do errado?
Começamos nesta semana uma nova série de estudos que nos levará
de volta à história do Éden, revelando progressivamente novas camadas de
sentido.
Paradoxalmente, um grande problema quando estudamos as histórias
bíblicas é que elas são muito familiares para nós. Não importa onde você tenha
crescido ou que nível de educação tenha, você certamente já se deparou com a
história de Adão e Eva dezenas, senão centenas de vezes.
Ouvimos a história na escola, aprendemos a mesma em casa, e
alguns até talvez já tenham assistido filmes sobre o relato do Éden. Nós
conhecemos aquela história, asseguramos para nós mesmos. Será que de fato
a conhecemos?
Quando conhecemos uma história muito bem, nós nos tornamos
presa fácil do que gosto de chamar de “efeito canção de ninar”. O “efeito
canção de ninar” retarda nossa habilidade de perguntar – e até mesmo de ver
– as questões realmente importantes que a Bíblia está pedindo que
investiguemos.
O “efeito canção de ninar” nos anestesia através da impressão da
familiaridade. Veja só como funciona: Quando foi a última vez que você parou
para pensar sobre a letra das canções de ninar que muitas mães cantam para
que seus filhos durmam? Pare por um só momento e pense... mas pense
bastante! Pense na letra e no sentido da mesma. Para quem não consegue
lembrar de nenhuma dessas canções de ninar, lá vai uma das mais conhecidas:
“Boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta”, ou ainda,
“Dorme menino que a cuca vem pegar”. Imagine só se a criança estivesse
2

mesmo prestando atenção ou se pudesse enteder de fato o que tais letras
querem dizer. A criança pode até dormir com essas canções mas se ela de fato
estivesse entendendo a “mensagem” que a letra transmite, permaneceria
acordada com certeza! Muitas perguntas poderiam surgir em sua mente, tais
como: Quem me deixaria ficar aqui bem em frente à esse boi perigoso? Será
que meus pais estão tentando se livrar de mim? Será que só por eu ter medo
de careta isso seria motivo suficiente para me deixar sozinho em frente à esse
animal furioso?
Poucos porém mesmo remotamente se incomodam com a violência
implícita em tais letras de inocentes canções de ninar. E por que não nos
preocupamos com isso? Simples: Porque nós paramos de “ouvir” essas letras.
Repetimos as mesmas quase que mecanicamente e não nos damos conta do
seu impacto; Nós mesmos as ouvimos muitas e muitas vezes desde criança, e
mesmo antes de sabermos exatamente o que suas letras queriam dizer. E
agora, mesmo como adultos tais letras não nos podem chocar.
As histórias bíblicas são como canções de ninar nesse sentido. Quase
todas as histórias bíblicas têm o seu “elefante na sala” ou seja, um grande
problema ou uma série deles que estão aí pedindo para serem investigados.
“Por que D-us pediria que Abraão tomasse seu filho e o sacrificasse somente
para se retratar no último momento e dizer que Ele não queria isso de fato?”.
O que exatamente D-us tinha contra a construção da Torre de Babel? Por que
D-us se daria o trabalho de mandar Moisés barganhar com o faraó a fim de
libertar o povo hebreu sabendo que Ele mesmo (o próprio D-us) é que estava
“endurecendo” o coração do rei egípcio?
Mas, aí é que está o problema. Essas histórias são muito familiares
para nós; nós as ouvimos por muitas e muitas vezes. Elas já se tornaram parte
de nossa formação cultural. Nós mergulhamos nessas histórias através de
osmose, o modo como inconscientemente desenvolvemos tendências que
refletem o lugar onde crescemos. Nós já não conseguimos ver todos os
problemas que existem nesses relatos bíblicos e perdemos a sensibilidade e a
curiosidade para investigá-los.
Eu gostaria de convidá-los a mudar esta realidade. Quero pedir que
você embarque conosco numa jornada, uma aventura pelo texto bíblico na
qual nós faremos uma releitura dessas histórias que pensávamos conhecer tão
bem; só que dessa vez, veremos as mesmas com outros olhos e faremos as
perguntas que qualquer leitor inteligente faria.
Se esta idéia te deixa nervoso, relaxe. Não precisamos temer estas
perguntas, porque na verdade elas não são problemas mas sim,
oportunidades. Elas são janelas que o texto bíblico nos entreabre para que
percebamos os sentidos mais profundos do relato sagrado.
Na verdade, você pode manter as janelas fechadas e fingir que elas
não estão ali. Mas se você não abri-las, o tesouro que se encontra mais
adiante, um rico e tridimensional entendimento da
Torá
¹ sem mencionar ainda
3

um mundo inteiro de
Chazal
² e
Midrash
permanecerá eternamente selado
³
para você.
Eis aqui então o que propomos. A cada ano, os judeus leêm toda a
Torá em seu ciclo de estudos; todavia, com muita freqüência não damos à
primeira
parashá
4
(que inclui Gên 1-3) a devida importância e atenção
merecidas.
Vamos então inspirar profundamente e dar uma olhada mais de perto
no texto da primeira parashá, na história de Adão e Eva, mas só que desta
vez, prestaremos muito mais atenção ao texto em si. Abra agora a sua Bíblia
na história de Adão, Eva e a serpente no Jardim do Éden. Sim, eu sei que você
conhece bem a história. Você tem a imagem da serpente enrolada na árvore
oferecendo uma maçã para Eva. Mas, aí é que está. Você deve ESQUECER tudo
isso e também essa imagem. Você precisa apagar essas imagens e ler a
história de novo. Você precisa quebrar a síndrome da canção de ninar.
Leia a história devagar e com cuidado. Só o texto, esqueça os
comentários. E enquanto faz isso, faça as seguintes perguntas para si mesmo:
Se eu estivesse lendo esta história pela prmeira vez, o que me chamaria a
atenção e quais elementos nela me parecem estranhos? Quais são as grandes
perguntas que a Torá deseja que eu faça sobre esta história?
Anote tudo o que achar importante e as perguntas que você tem
sobre o texto e nos veremos no próximo capítulo de nossa saga de
investigação do sentido mais profundo do texto bíblico. Até lá.
Rabino David Fohrman
Referências:
1.
Torá
= os cinco primeiros livros de Moisés (Gên/Êx/Lev/Núm/Deut). Tradicionalmente inclui-
se também a
Mishná
, cerne e coluna vertebral do
Talmud
.
2.
Chazal
= abreviatura hebraica de
Chachameinu Zichronam Liv'rachá
(Nossos Sábios de
Abençoada Memória). Trata-se de uma referência às interpretações bíblicas dos sábios do
judaísmo.
3.
Midrash
= comentários e interpretações (geralmente escritas) de certas passagens da Torá,
elaboradas por sábios antigos.
4.
Parashá =
porção da
Torá
lida e estudada a cada sábado na sinagoga.
4


CAPÍTULO I
Adão, Eva e algo mais...
Já na introdução nós pedimos que o leitor fizesse uma releitura da
história de Adão, Eva e da serpente, desta vez, prestando muita atenção e com
uma nova abordagem, fazendo à cada etapa da leitura aquela perguntinha
básica: “O que há de estranho nessa história?”. Vamos juntos revisitar
resumidamente nosso relato – assim:
Após ter criado o mundo, D-us cria dois seres humanos e os coloca
num paraíso, no Jardim do Éden. Ele lhes concede domínio e livre soberania
sobre todo o território e a criação. Há apenas uma restrição: Uma certa árvore
da qual eles
não
deveriam comer --- é a “árvore do conhecimento do bem e do
mal”. O fruto dessa árvore
não
deveria ser comido sob nenhuma circunstância!
Entretanto, para resumir, os dois seres humanos conseguem de
alguma forma transgredir a única ordem proibitiva que lhes fora dada.
Seduzida por uma misteriosa serpente, Eva come da árvore e também faz com
que Adão partilhe do fruto. O Eterno parece ter ficado decepcionado e dita
várias punições: A serpente? Não andaria mais, apenas rastejaria. A mulher?
Suas descendentes sofreriam uma multiplicação de dores na concepção e no
parto. E o homem? Ele e sua descendência deveriam tirar da terra o sustento
de cada dia à custo de suor do rosto. E para piorar, a morte passa a ser o
destino final de todos os envolvidos. Ninguém mais poderia viver para sempre.
O Éden fora colocado fora do alcance; à partir de então, o ser humano deveria
buscar um outro lugar para servir de habitação.
Mas, espere um momento! Há ainda um detalhe sobre nosso texto
que parece ter escapado: há uma outra árvore no jardim, uma árvore
misteriosa, a chamada “árvore da vida”, e a última coisa que D-us quer agora
é que alguém tome e coma do fruto da mesma.
Bem, que problemas temos aqui? A história te cai bem ou você sente-
se desconfortável com ela? Se você sente-se desconfortável, será que poderia
justficar e dizer o por quê dessa sensação?
5


Como mencionamos na introdução, todas as histórias têm o seu
“elefante na sala”: uma pergunta óbvia que é tão básica e tão profundamente
perturbadora que até que você ache um meio de lidar com ela não pode
afirmar honestamente que entende o que está lendo. Será que temos aqui em
nosso relato sobre Adão, Eva e a serpente uma pergunta deste tipo ou desta
magnitude?
Eu pessoalmente acredito que sim.
Vamos conversar um pouco sobre aquela nossa primeria árvore
misteriosa, a “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Com certeza este é
um nome muito estranho, mesmo para uma árvore; entretanto, é exatamente
esse o nome que a Bíblia lhe dá, então presumivelmente é isso mesmo o que
ela é: um meio que transmite conhecimento sobre o bem e o mal, ou a
habilidade de distingüir o certo do errado àqueles que participam do seu fruto.
Mas, há um grave problema com tudo isto. Poderíamos resumir este problema
numa pergunta:
Por que D-us desejaria que tal conhecimento sobre o bem e o mal
fosse negado às pessoas?
Pense nisso. Será que os seres humanos estão em melhores ou
piores condições pelo conhecimento do bem e do mal? Distingüir o certo do
errado está mais para um patrimônio ou uma grande responsabilidade para os
seres humanos?
Imagine um mundo no qual as pessoas fossem exatamente como são
agora: inteligentes, seres que podiam falar, andar, dirigir carros, fazer
investimentos etc. Entretanto, faltava algo nessas pessoas. Elas não sabiam
distingüir o certo do errado.
Nós temos uma palavra para definir esse tipo de pessoa. Nós os
chamamos de sociopatas.
Alguém que possua todas as faculdades humanas mas que não saiba
distingüir o certo do errado é alguém que pode assassinar outra pessoa com
uma machadinha da mesa forma que eu e você cortamos a grama. Será que
D-us teria prazer em criar um mundo cheio desse tipo de gente? Certamente
as pessoas estão muito melhor conhecendo e distingüindo o certo do errado.
Então por que será que D-us parece insinuar que tal conhecimento é
indesejável, visto ter proibido o homem de comer do fruto da tal árvore?
Uma saída tentadora para este problema seria por exemplo, sugerir
que tudo não passou de uma “armação”, um mero “teatro”: D-us na verdade
queria que as pessoas pudessem usufruir do conhecimento que a árvore podia
transmitir e ficou feliz com o fato de que os humanos partilharam do seu fruto.
Mas isso pode não ser tão simples assim pois tal abordagem é extremamente
problemática. Pelo que percebemos do relato da
Torá
(Bíblia), D-us parece
profundamente desapontado com Adão e Eva após terem comido da árvore;
6

Ele chega até a puní-los de forma severa. Como devemos entender tal
desapontamento? Não parece um tanto perverso imaginar o Altíssimo em
segredo deleitando-se com o fato de que ambos comeram finalmente do fruto
para logo em seguida puní-los com rigor exemplar? Será que Ele ocultaria sua
alegria e prazer por trás de uma 'máscara' de decepção e descontentamento?
D-us claramente queria que Adão e Eva evitassem aquela árvore. Mas
isso nos leva à outra questão crucial: Por que desejaria D-us privar o homem
de uma compreensão plena do bem e do mal?
A verdade é que a pergunta é um tanto mais profunda do que isto.
Não é estranho simplesmente o fato de que D-us tenha imposto limites com
relaçâo àquela árvore: Na verdade, a própria
existência
de tal árvore no jardim
parece criar uma contradição básica na história como um todo. Veja por que:
O que acontece imediatamente após Adão e Eva comerem da árvore
cujos misteriosos frutos conferem conhecimento do “bem e do mal”? O Eterno
D-us zanga-se com eles e pune-os com rigor. Mas se Adão e Eva foram punidos
pelo que fizeram, isto pressupõe que eles sabiam que tinham feito algo ruim,
tanto é que na seqüência buscam justificar o ato. O homem afirma que a
mulher deu-lhe de comer o fruto e a mulher por sua vez, afirma ter sido
enganada pela serpente. Não punimos alguém que não esteja ciente de que
fez algo errado. Assim, tanto Adão como Eva tinham um conhecimento prévio
do que era certo ou errado, e isso antes mesmo de terem comido do fruto
proibido. Bem, poderíamos no mínimo dizer que basicamente eles sabiam de
antemão que era “certo” obedecer a D-us e “errado” desobedecê-Lo.
Mas agora nos deparamos com outro dilema, pois se Adão e Eva já
entendiam a distinção entre o certo e o errado, o bem e o mal, então de certa
forma eles já possuíam aquilo que a tal árvore poderia dar-lhes! E isso então
poderia significar que a árvore era algo inútil, que não passava de uma farsa.
Temos aqui um sério problema. Não é algo como se perguntar por
que aqui ou ali a
Torá
incluiu uma palavra extra num verso ou por que o
comentarista Rashi citou um
Midrash
após o outro na interpretação de uma
passagem. Estas são perguntas interessantes mas se você não tiver respostas
ainda assim poderá dormir tranqüilo à noite. Todavia, a pergunta que nos
acabamos de fazer, ou seja, “Será que Adão e Eva já possuíam o conhecimento
que a árvore poderia transmitir-lhes?” - é fundamental. É básica. É o tipo de
pergunta que se você não encontrar resposta pode até fazer com que perca o
sono, pois enquanto você estiver “no escuro” e com falta de respostas, a
história de Adão e Eva não fará para você sentido algum. Então como será que
poderemos lidar com este problema? Eu gostaria agora de delinear um
esquema de nova abordagem que acredito possa vir a ser de utilidade e talvez
represente uma forma de solução para nosso pequeno grande dilema.
UM MUNDO ALÉM DO BEM E DO MAL
7

Talvez tenhamos sido vítimas de falsas premissas. Nós presumimos
que conhecemos que tipo de conhecimento a árvore deu a Adão e Eva: um
conhecimento do 'bem' e do 'mal', do 'certo' e do 'errado'. Mas numa segunda
reflexão poderemos notar que só pelo fato da árvore ser chamada de “árvore
do conhecimento do bem e do mal” isso não signiifca absolutamente que Adão
e Eva não tinham nenhum tipo de conhecimento ético ou moral e que não
sabiam distingüir o certo do errado antes mesmo de terem experimentado o
fruto probido por D-us. Significa simplesmente que eles não chamavam isso de
“bem” ou “mal”, “certo” ou “errado”; eles chamavam isso por uma outra
nomenclatura.
Dois fatos bíblicos aludem a esse fato que expomos. O primeiro: o
homem (ser humano) foi criado à imagem e semelhança de D-us – e isto antes
mesmo de ter experimentado do fruto, naturalmente. A “imagem” a que a
Torá
faz referência é obviamente a imagem
moral
, uma vez que de acordo
com um dos treze princípios do judaísmo, D-us não tem corpo ou forma.
Maimônides (Rabi Moshe Ben Maimon, Espanha 1135-1204) em sua
obra
Moreh Hanevukhim
(“O
Guia dos Perplexos”) distingüe dois conceitos:
tselem
(forma) e
demut
(semelhança), de
toar
(aparência) e
tavnit
(configuração).
Toar
e
tavnit
dizem respeito à forma material, enquanto
tselem
e
demut
à forma espiritual. A
Torá
ao relatar a criação do homem faz
uso dos termos
tselem
e
demut
(Gên. 1:26), definindo a imagem espiritual do
Criador em seu caráter afirmando assim um dos princípios básicos do
judaísmo: Não podemos elevar a D-us através da matéria, mas sim, através do
espírito (vide Is 44:13), daí a rejeição formal do judaísmo pela idolatria, pois o
ídolo é apenas “aparência material” ou uma “configuração da matéria”.
Tendo sido criado dessa forma, com a
imago dei
(imagem divina)
impressa em seu ser, é mais do que óbvio esperar que o homem já tivesse
ciência moral e ética antes mesmo de ter comido da árvore do conhecimento
do bem e do mal.
O segundo fato diz respeito à própria consciência do homem. Ele
entendeu muito bem a ordem divina de manter-se longe da árvore e sabia
assim que obedecer era o 'certo' e 'desobedecer' era errado. Entendeu também
que a penalidade para a transgressão seria a 'morte'. Assim, entendia a
relação crime x castigo, em suma, mesmo no mundo antes da queda ele tinha
consciência moral.
A abordagem que estamos sugerindo não é de minha autoria. É na
verdade a abordagem usada por Maimônides em seu
Guia dos Perplexos.
O
Rambam
considera a mesma pergunta que nós estamos nos fazendo agora:
1
Por que D-us negaria ao homem o conhecimento do 'bem' e do 'mal'? E a
resposta que ele nos dá é essa: A árvore não nos deu um entendimento do
que era certo e errado pelo fato de não termos isso antes; a bem da verdade,
o comer do fruto da árvore transformou este entendimento primitivo de uma
coisa para outra. Transformou isso em algo que passou a ser chamado de
8


“conhecimento do bem e do mal”.
Se isto te parece um tanto obscuro, tente pensar nisto desta forma:
Hoje em dia quando fazemos algo certo pensamos nisso como algo “bom”. Se
por outro lado fazemos algo errado, pensamos nisso como “mau”. Mas o
Rambam
contende, esses não são os termos mais naturais que poderíamos
possivelmente usar. Esses termos passaram a ser relevantes em nosso
inconsciente coletivo tornando-se parte de nosso vocabulário somente após
termos experimentado do fruto proibido. No mundo do Éden, naquele mundo
anterior à árvore do conhecimento do bem e do mal, as palavras “bem” e
“mal” pareceriam estranhas e não apropriadas. Sim, nós até poderíamos estar
cientes do certo e do errado, mas certamente não teríamos chamado isto de
“bem” e “mal”, Nós teríamos pensado nisso de forma diferente. Nós teríamos
chamado isso por um nome diferente.
Mas, de que forma então teríamos chamado o “bem” e o “mal”
naquela época? Como seria pensar em conceitos de “bem” e “mal” no mundo
edênico, no mundo antes da árvore do conhecimento do bem e do mal? Essa é
na verdade uma intrigante pergunta. Para sermos honestos, estamos indo
muito além da capacidade humana normal, para simplesmente formular a
pergunta; fazer tal pergunta é inquirir, investigar um mundo que não mais
conhecemos; um mundo no qual o “certo” e o “errado”, o “bem” e o “mal”
pareciam vastamente diferentes dos nossos conceitos atuais. Mas é
exatamente para isso que estamos aqui. A
Torá
sugere que esse era o mundo
ideal, o mundo genuíno e é para aquele mundo perdido que nós lutamos para
retornar.
Revelar a natureza do bem e do mal no mundo autêntico do Éden
será uma de nossas tarefas mais importantes nos capítulos a seguir. Mas antes
de darmos início à essa aventura nós precisamos nos munir de mais dados. Por
enquanto devemos voltar ao texto de nosso relato e nos perguntar: Quais são
os outros problemas que a história de Adão e Eva nos apresenta?
Releia mais uma vez a narrativa do Éden e tente encontrar os outros
problemas que temos ali. Anote tudo e até o próximo capítulo.
Referências:
1.
Rambam
= acrônimo de Rabi Moshe Ben Maimon.
CAPÍTULO II
9

O conto das duas árvores
No capítulo anterior nos concentramos basicamente no tema da
misteriosa “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Mas sabemos que havia
no jardim uma outra árvore, igualmente misteriosa, chamada de “árvore da
vida”. Diz Gênesis 2:9,
“E D-us fez crescer da terra todo tipo de árvore agradável à vista e
boa de se comer, [incluindo] a árvore da vida e a árvore do conhecimento do
bem e do mal”
Por todo o relato podemos perceber que a árvore da vida permanece
sempre em segundo plano. Ela é criada e logo em seguida sai de cena,
desaparecendo da discussão. Que papel essa árvore misteriosa desempenha na
história, e como devemos entender o seu sentido?
Embora a árvore da vida permaneça fora de vista, ainda assim não
permanece ausente no desfecho de nossa história, pois após terem Adão e Eva
comido do fruto proibido, ouvimos falar da árvore da vida mais uma vez:
“E D-us disse: Eis que o homem tornou-se como um de nós,
conhecedor do bem e do mal. Agora deve-se evitar que ele estenda a mão e
tome do fruto da árvore da vida e coma e viva para sempre”
(Gênesis 3:22).
Temos aqui a razão de D-us ter exilado Adão e Eva do Éden. Eles são
expulsos dali para que se assegure que jamais voltariam a comer da árvore da
vida. Mas há algo extremamente estranho nisso tudo. Pois ao lermos a história
percebemos que Adão não recebeu ordem alguma para ficar longe da árvore
da vida. Se D-us achasse uma má idéia que o homem dela comesse, por que
Ele não os instruiu para que a evitassem, como fez com a outra árvore, a do
conhecimento do bem e do mal?
Agora para deixar as coisas um pouquinho piores, vamos relembrar
onde exatamente localizava-se a árvore da vida:
10

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
“...a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento
do bem e do mal”
(Gênesis 2:9)
Vamos somar isso tudo. A árvore da vida estava no meio do jardim, e
Adão e Eva não receberam ordem alguma para que a evitassem. Pela
percepção lógica, D-us até desejava que o homem comesse daquela árvore
eventualmente. Na verdade, nem sabemos se eles tinham consciencia de que
se tratava de uma árvore especial. O que então aconteceria eventualmente?
Ora, era só questão de tempo para que alguém comesse de seu fruto.
Perceba então que o enredo de nossa história fica ainda mais
complexo. Evidentemente D-us não se importava se Adão e Eva comessem da
árvore da vida. Ele aparentemente até desejava que eles comessem daquele
fruto; mas isso foi antes deles terem comido da outra árvore, a do
conhecimento do bem e do mal. Após terem partilhado do fruto proibido, de
alguma forma tudo muda: agora a árvore da vida ficaria for a do seu alcance.
Todos os esforços para que se evite que a humanidade jamais outra vez tome
do seu fruto e coma devem ser feitos.
Por que? O que será que há por trás desta curiosa relação entre as
duas árvores? Por que o fruto da árvore da vida pode ser comido antes de se
experimentar do fruto do conhecimento do bem e do mal mas não depois
disso?
Este é um ponto que certamente revisitaremos mais tarde. Mas ainda
não acabamos de explorar os mistérios das relações entre as duas árvores.
Para dizer a verdade, estamos só no começo.
AS ÁRVORES SE CONTRADIZEM?
Tente esta pergunta: Como eram Adão e Eva antes de comerem do
fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal? Eram mortais ou imortais?
Vejamos o que cada um tem a dizer sobre isto. Comecemos pela
árvore do conhecimento. Nós sabemos que o homem foi advertido a não comer
daquele fruto, por que no dia em que dele comesse, certamente morreria
(Gênesis 2:17).
Como afirmou Nachmânides, isso não significa que o fruto os mataria
imediatamente tendo em vista que sabemos que os dois não morreram “no
dia” em que comeram daquela referida árvore. Bem, você talvez possa pensar:
Talvez o texto queira dizer algo como: “No dia em que vocês comerem desse
fruto, vocês se tornarão mortais”; esta, poderia você pensar, é a 'mensagem'
por trás dessas palavras de advertência da parte de D-us.
Então a árvore do conhecimento do bem e do mal parece responder a
pergunta que fizemos anteriormente. Ela prova que Adão e Eva eram
11

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
originalmente imortais, certo?
Errado! Porque agora já é hora de vermos o que a árvore da vida tem
a dizer sobre esta questão.
A
Torá
diz que D-us baniu Adão e Eva do jardim para que eles não
mais estendessem a mão e comessem do fruto da árvore da vida, vivendo
assim “para sempre”. Bem, o verso parece muito claro à respeito de uma
coisa: o fruto da árvore da vida confere imortalidade – se você comê-lo, jamais
morrerá. Ora, se a árvore da vida tinha o poder de tornar o homem imortal
isso significaia que ele antes era mortal, ou que mortal fora criado, pois caso
contrário, que lógica haveria em se plantar uma “árvore da vida” cujos frutos
transmitiam a condição de imortalidade se o homem era desde sua criação um
ser imortal?
Mas, espere! Há algo de estranho aí, pois a árvore do conhecimento
do bem e do mal parece nos dizer que o homem teria vivido originalmente
para sempre caso não tivesse dela comido. Todavia, a outra, a árvore da vida
parece sugerir que o homem era mortal pois deveria comer dela para viver
para sempre.
À primeira vista, as árvores parecem ser contraditórias.
Mas isso a primeira vista. Uma surpreendente verdade vai nos
demonstrar qual era a natureza do homem antes dele ter experimentado do
fruto proibido. Pare de ler por enquanto e pense se você pode encontrar a
solução.
O JARDIM DO ÉDEN E O 'PRINCÍPIO DA INCERTEZA' DE HEISENBERG
Eis aqui nossa sugestão para resolver este dilema: As duas árvores
estão corretas e não se contradizem. O ser humano antes de comer das
árvores não era nem mortal, nem imortal. Se comessem do futo da árvore da
vida, tornariam-se imortais. Se por outro lado comessem do fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal, eles se tornariam em seres que
experimentariam a morte. Enquanto não provaram de nenhum desses frutos, o
ser humano estava na chamada “zona crepuscular”, um estado de suspensão,
uma condição precária de realidade, entre a mortalidade e a imortalidade. Sua
natureza era indeterminada.
Se um estado assim de indeterminação te parece estranho, não se
preocupe. Vá à qualquer biblioteca e apanhe algum livro sobre Física Quântica.
De acordo com este ramo da ciência, é uma característica padrão da realidade
que as coisas sejam indeterminadas. Em dado momento, um elétron pode
estar aqui ou ali afirma Heisenberg, mas neste exato momento, ele não se
encontra nem aqui e nem ali. Sua posição ou determinação só torna-se real
quando um observador entra em cena e fixa-se nele. Bem, se os elétrons
podem swer indeterminados, as pessoas tabém.
12

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Ora, valendo-se deste princípio, o Éden era um lugar onde o homem
foi precariamente colocado num estado indeterminado, entre a vida e a morte,
dependendo de sua escolha. Se prestarmos bem atenção, o Éden e este estado
de indeterminação do ser humano lembra um marcante episódio na história
judaica. Isto nos faz lembrar de um tempo em que o povo judeu não
encontrava-se nem aqui nem ali, quando o Eterno D-us ofereceu-lhes uma
escolha similar entre a 'vida' e a 'morte':
“Vêde que hoje tenho proposto perante vós uma escolha entre a vida
e o bem [por um lado] e a morte e o mal [por outro]... Escolhei pois a vida...”
(Deuteronômio 30:14-19)
Quando Moisés pronunciou estas palavras, o povo judeu encontrava-
se no limiar de um deserto, não possuindo ainda nem a 'vida' e nem a 'morte'.
Uma vez mais, eles deveriam fazer uma escolha. Neste caso, a 'vida' era para
eles a aceitação da
Torá
e seus princípios, enquanto a 'morte' significava a
rejeição dela.
É de fato surpreendente que a escolha de abraçar a
Torá
e apegar-se
aos seus princípios seja retratada da exata forma como foi no caso da árvore
da vida. Alguns poderiam afirmar que trata-se de mera coincidência ou uma
meticulosa escolha de metáforas – pode, mas também pode ser que o episódio
queira nos dizer algo mais profundo, e veremos que isto é fato!
QUERUBINS COM A ESPADA FLAMEJANTE
Considere isso por um momento: Os anjos que D-us colocou na
entrada do jardim para guardar o caminho [de volta] para a árvore da vida
(Gênesis 3:24) pertencem à uma ordem angélica muito particular. Eles são
querubins. (Para aqueles que apreciam arte renascentista, eles são aqueles
tipos de anjos que Rubens gostava de retratar em seus quadros, apesar de eu
particularmente não saber por que ele pensava que sabia qual era a sua
aprência!) Assim, percebemos que querubins são anjos relativamente raros
nas Escrituras. Por todos os cinco livros de Moisés encontramos apenas duas
referências a eles; Além da referência no Gênesis, guardando o jardim e o
caminho para a árvore da vida, eles são mencionados só mais uma vez. Postos
sobre a
kapporet
(propiciatório
)da
aron hakodesh
(arca sagrada), dois
¹
querubins de ouro:
“E farás dois querubins de ouro; batidos e feitos de uma só peça os
farás das duas extremidades do tampo...e os querubins estenderão suas asas
cobrindo com elas o tampo...”
(Êxodo 25:18-20)
Vamos agora um passo adiante. Que 'tesouro' guardavam estes dois
querubins sobre a arca sagrada da aliança?
Eles guardavam as tábuas das Dez Sentenças (chamadas também de
13

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
“Dez Mandamentos”), em resumo, guardavam a Lei Divina, a
Torá.
Para aqueles que freqüentam a sinagoga no
shabbat
(sábado) o que
vou dizer agora é bastante familiar. Uma passagem de Provérbios é recitada
enquanto o leitor ergue o rôlo da
Torá
para que todos possam contemplá-la:

Etz chayim hi, lamachazikim bah”

Ela é árvore da vida para os que a ela se apegam” (Provérbios 3:18)
Fascinante, não é mesmo? A outra passagem onde encontramos os
querubins eles estão guardando o caminho para a árvore da vida, e lá em
Êxodo, encontramos mais uma (e única) vez os querubins guardando desta vez
a
Torá,
também chamada de “árvore da vida” para aqueles que se apegam à
ela.
Só que desta vez, os querubins não estão nos afastando da “árvore
da vida”, muito pelo contrário: eles estão nos guiando até ela, protegendo ao
mesmo tempo nós e a Sagrada
Torá
debaixo de suas asas.
Bem, e agora? Que faremos nós com todas estas informações? Por
que será que a escolha no Éden entre a vida e a morte é mais uma vez
repetida como a escolha entre aceitar ou rejeitar a Lei Divina (a
Torá
)? Por que
os querubins que antes vigiavam o caminho de volta à árvore da vida desta
vez parecem nos incentivar a que possamos ter acesso àquela segunda “árvore
da vida” que encontrava-se dentro da arca da aliança, à saber, a Sagrada
Torá
? O que queremos dizer exatamente quando chamamos a
Tor
á
de “árvore
da vida”? Quais são as semelhanças entre a árvore do jardim e esta segunda?
Nós certamente temos um longo caminho pela frente, mas já demos
um grande passo chegando até aqui, a fim de desvendarmos os mistérios que
envolvem aquelas árvores e o relato do Éden. No próximo capítulo estaremos
estabelecendo outras peças deste grande quebra-cabeça da saga de Adão e
Eva no Éden perdido. E quando finalmente tivermos em mãos todas as peças,
começaremos a montar este quadro a fim de desvendarmos a figura que ele
pretende nos mostrar. Até lá.
Referências:
1.
kapporet
(propiciatório) = tampa que cobria a arca da aliança.
14

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
CAPÍTULO III
O lado escuro do Paraíso
A Bíblia está repleta de personagens que exemplificam o bem e o
mal, e embora possamos simpatizar com os personagens que se aliam ao
“bem”, nem sempre eles são os protagonistas da história. Considere por
exemplo a narrativa sobre Cain e Abel. A história não é na verdade sobre Abel.
Nós não sabemos quase nada sobre ele. Ele é assassinado pelo irmão e
desaparece naturalmente da narrativa. Quer gostemos ou não da idéia, a
história é sobre Cain: o que o teria levado a matar seu irmão, como era o seu
universo interior, o que D-us quis dizer-lhe logo após ter cometido o seu crime
e se ele alcançou perdão.
Quem são os personagens principais do nosso relato? Nosso primeiro
impulso é apontar Adão ou Eva. Mas talvez a história é sobre alguém mais,
também: a serpente. Naturalmente ela não é um personagem muito popular,
não é certamente um herói – mas talvez a história seja tanto sobre ela quanto
e sobre nós. Vamos tentar entender como ela se incorpora à nossa história e
que papel ela representa.
O QUE NÓS SABEMOS SOBRE A SERPENTE?
Quando fizemos esta perunta pela primeira vez em nossas palestras,
recebemos várias respostas, mas e maioria delas afirmava que a serpente era
o “diabo”, um anjo caído, um poderoso inimigo de D-us que busca perverter
Seus desígnios à todo instante. Sendo judeu, eu confesso que tenho sérias
dificuldades de enteder e aceitar a noção de uma fonte independente de mal
no universo que sirva como “inimigo” de D-us, o Todo Poderoso. O pensamento
judaico tende a ver Satan de uma outra forma, não como opositor dos planos
divinos, mas como um tipo de “promotor celeste” que é parte importante nos
planos de D-us. Assim como nenhuma côrte terrestre é completa sem um
promotor, assim também a “côrte celestial”. Sendo assim para o judaísmo,
15

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Satan é o promotor celeste que insiste na aplicação da divina justiça com todo
o seu rigor.
Será então que a serpente era uma manifestação de Satan? Vejamos.
Gênesis 3:1 poderá nos ajudar: “
Ora a serpente era o mais astuto de
todos os animais do campo que D-us tinha feito
”. A questão que podemos
levantar aqui é: Será que a “serpente” era astuta por natureza ou porque
Satan estaria “incorporado” nela? Sabemos que para perguntas óbvias não são
necessárias respostas. A serpente era astuta porque D-us assim a tinha feito e
não porque algum “ser sinistro e maligno” estava no “controle” dela. Aliás,
acreditar que um suposto “diabo” estaria controlando a serpente não passa de
mera conjectura, uma especulação que não pode ser comprovada e pior ainda:
trata-se de uma adição à Palavra Divina.
Entretanto, o que sabemos sobre a serpente é um tanto estranho.
Que serpente é essa que “fala” e que parece “andar” (visto que “rastejaria”
mais tarde como punição divina)? Que serpente é essa que passa a comer pó
após o episódio da árvore? (ora, isto é uma nítida evidência de que deveria
comer alguma outra coisa antes!) Enfim, que serpente é essa que é o mais
astuto dentre todos os animais que D-us tinha feito?
É exatamente aqui que o texto deixa de ser simples, ingênuo e direto
para tomar uma nova e surpreendente direção. Não estamos mais falando de
coisas tangíveis, físicas. Tudo toma uma outra direção: o que temos aqui é um
“mapa” da consciência humana.
Adão não é mais um homem.
Eva não é simplesmente sua muher.
A serpente se reveste de outro sentido.
As árvores e até o próprio jardim assumem papéis diferentes.
O que muitos deixam de perceber é que temos
dois
relatos no
Gênesis sobre a criação do homem. O primeiro, mais curto, reduz-se
basicamente a três versos (1:26-28). O segundo relato estende-se de Gên
2:7-25.
Isto é notável, pois normalmente não se dá muita importância para o
primeiro relato, aliás ele às vezes passa por despercebido da grande maioria
dos leitores.
A ênfase de quase todos os leitores e estudiosos dos temas bíblicos
concentra-se geralmente no segundo relato. Entretanto, ao contrário do que
muitos poderiam pensar e também ao contrário do que geralmente se expõe
por aí, os dois relatos são distintos, e contém diferenças notáveis. Há sete
diferenças cruciais entre os dois relatos:
16

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
No primeiro relato, o ser humano (macho e fêmea) são ambos

criados no mesmo momento (1:27). Já no segundo, o homem
(2:7) surge ANTES da mulher (2:22).
No segundo relato, eles não são mais chamados de “macho” e

“fêmea”, mas sim, de “homem” e “mulher” (2:23).
No primeiro relato, não vemos D-us “soprando em suas narinas” o

“fôlego vital”, só no segundo (2:7).
No primeiro relato, D-us não impõe nenhuma restrição alimentar

sobre o que a terra produz (1:29); no segundo, há uma restrição
clara quanto à chamada árvore do conhecimento do bem e do
mal”: Dessa árvore eles NÃO poderiam comer (2:16-17).
No primeiro relato, a ordem dada é apenas quanto à reprodução da

espécie (1:29). No segundo, entretanto, há uma clara alusão ao
sentimento e ao envolvimento emocional, pois o homem deverá
deixar seus pais e unir-se à sua esposa, tornando-se com ela “uma
só carne” (2:24). Curiosamente não encontramos no segundo
relato uma ordem quanto à reprodução da espécie, a qual já está
implícita em 2:24 quando da união plena entre o marido e sua
esposa.
No primeiro relato (1:27) o homem é “criado”; no segundo, ele é

“formado” (2:7). A mulher por sua vez, no segundo relato é
“construída” ou “edificada” de acordo com o texto hebraico (2:22)
No primeiro relato, o ser humano (macho e fêmea) recebem uma

bênção para sua multiplicação e o domínio sobre os outros seres
vivos (1:28) e o verso 29 demonstra que o ser humano naquela
época não era produtor, mas sim,
coletor
– pois apenas coletava
da terra o alimento já existente. Não existia agricultura. Já no
segundo relato, uma das funções do homem era
cultivar
o jardim
(2:15).
O leitor atento descobrirá que ocorre uma nítida evolução de um
relato para o outro: Antes chamado simplesmente de macho e fêmea, o ser
humano passa a ser chamado de homem e mulher; O homem do primeiro
relato não recebe o sôpro divino, ao contrário do segundo; O homem do
primeiro relato parece apenas comprometido com a preservação da espécie,
mas o segundo percebe a necessidade de envolvimento emocional nas relações
homem e mulher e conhece o conceito de maternidade e paternidade; No
primeiro relato, o ser humano é
criado
– algo denso. No segundo, ele é
formado
– uma idéia mais sutil, mais evoluída.
Mas, o que isso tudo parece querer dizer?
Mais uma vez, a Bíblia já antecipa o que a ciência vem descobrir
17

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
séculos, milênios depois. As Escrituras judaicas, conhecidas como Antigo
Testamento especificamente no livro de Gênesis demonstram a “evolução” do
ser humano, em linguagem naturalmente simples.
No primeiro relato, como simplesmente “macho” e “fêmea” o homem
não conhecia as relações familiares e tão pouco a produção de alimentos, uma
vez que andava aos bandos apenas coletando o que a natureza pródiga lhe
oferecia. Não existia a idéia de família, mas a espécie preocupava-se apenas
com a preservação de sua espécie. O “sôpro divino” que lhe faltava era
simplesmente a evolução do intelecto, a conscência de si mesmo e o marco
evolutivo da espécie humana.
Mas, e o segundo relato? O que o faz parecer tão diferente do
primeiro?
Em primeiro lugar, o segundo relato é seguramente uma parábola,
uma alegoria que pretende nos transmitir a verdade da evolução humana e
finalmente a prova ou o teste oferecido aos nossos “ancestrais edênicos”. De
acordo com a exegese judaica, nós poderíamos interpretar a passagem na
forma literal, mas deixaríamos de perceber várias nuances de significado,
ocultas no texto superficial do relato do Éden. Há várias “camadas” de sentido
em cada passagem das Escrituras e o relato que estamos estudando não é
certamente uma exceção.
Explicando: Adão, do hebraico
Adam
não é exatamente um nome
próprio. Seu significado é “humanidade”; Eva, do hebraico
Chava
não é
também um nome próprio: significa “vida”. Assim, quando D-us “construiu”
Eva, Ele trouxe “vida” (
Chava
) para a “humanidade” (
Adam
). Se isto parece
confuso, talvez fique ainda mais se questionarmos: Mas Adão não tinha vida
antes de Eva? Naturalmente que sim! Logo, a “vida” que Eva trouxe para Adão
deve ter um outro sentido.
No texto aberto¹ da
Torá
, Adão busca encontrar uma adjutora,
alguém que lhe sirva de parceira. D-us lhe apresenta assim os animais que
criara e ele dá nomes a todos mas, segundo Gênesis 2:20,
“para o homem não
se achou ajudadora idônea”.
O texto aberto sugere que Adão procurou entre os animais uma
parceira, mas sua busca foi infrutífera e sem sucesso: era evidente que tal
busca seria inócua e destituída de sentido; D-us naturalmente sabia disso, e
desta forma, nosso relato deve estar querendo dizer algo mais.
Você deve lembrar que ao criar Adão, D-us soprou-lhe nas narinas o
fôlego de vida (Gênesis 2:7). Será que D-us fez o mesmo ao criar os outros
animais? A resposta é naturalmente NÃO. Isso por si só já coloca o homem, a
humanidade (
Adam
) num patamar mais elevado do que seus pares do reino
animal. É de se estranhar entretanto que D-us tenha criado todos os outros
seres como casais, macho e fêmea --- e só com o “homem” isso tenha sido
diferente! Bem, talvez tenha sido diferente aqui neste segundo relato sobre a
18

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
criação do “homem”, mas certamente não foi no primeiro (Gênesis 1:26-28).
Nessa passagem vemos D-us criando o ser humano, macho e fêmea.
Aliás é importante observar que no primeiro relato o homem é
“criado” (o verbo hebraico
bara'
implica criação à partir do nada). No segundo,
o homem é “formado”, “plasmado” ou ainda, “moldado”; o verbo usado aqui da
raiz
yatsar
implica em transformação de algo já existente.
E o que aprendemos disso?
No primeiro relato, o ser humano primitivo é “criado” na forma densa,
na crueza da matéria, no sentido exato da palavra. No segundo, ele é
“formado”, o que denota sutileza, avanço psíquico e espiritual, evolução
intelectual.
UMA “TENTAÇÃO” CURIOSA
Voltemos agora ao tema da serpente, a fim de que possamos revelar
sua verdadeira identidade. Só para lembrar após esse longo parêntesis: Tudo o
que sabemos sobre a serpente é deveras inimaginável caso estivéssemos
falando de um animal de verdade: Ela fala, anda, e é astuta (inteligente). Em
certo sentido, a serpente assemelha-se muito a um ser humano. Não se
surpreenda, é isto mesmo – a serpente lembra o que nós somos.
Bem, vamos falar um pouco sobre o que a serpente diz em sua
conversa com Eva. Lembre-se: a
Torá
descreve a serpente como um ser
inteligente. Pense então por um momento: Faça de conta que você é a
serpente e que deseja fazer com que Eva coma um tipo de fruto que ela não
deveria comer. Como você agiria nesse caso? Para o que apelaria?
Bem, talvez você colocasse ênfase na beleza da fruta, fazendo com
que Eva percebesse como ela era deliciosa. Talvez você inventasse alguma
estória acerca dos supostos poderes 'mágicos' daquele fruto; talvez como a
rainha má do conto da Branca de Neve você aparecesse diante de Eva com
uma bela maçã brilhante e vermelha...
Mas, vejamos qual foi a estratégia da serpente. Ela se aproxima de
Eva e diz no original hebraico: “
Af ki amar elokim lo tochlu mikol etz hagan”.
A
maioria das traduções verte esta frase assim:
“É assim que D-us disse: Não comereis de toda árvore do jardim?”
(Gênesis 3:1)
Mas, essa não é a tradução mais precisa do hebraico. Uma tradução
literal, mais precisa, ficaria assim:

Mesmo que D-us tenha dito, não comereis de alguma árvore do
jardim....”
19

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Não é muito de se admirar que os tradutores tenham tomado certa
liberdade com o texto hebraico original, uma vez que a frase soa um tanto
diferente do que esperaríamos de um bom “estrategista” como pensamos que
a serpente fosse. Em primeiro lugar, a frase no original não parece ter um
final, uma conclusão. De algum modo, parece que a serpente foi interrompida
antes de terminar sua colocação; sua frase se perde de repente no meio do
nada. Não podemos chegar à nenhuma conclusão se não tentarmos deduzir o
que ela queria dizer à partir das informações de que dispomos.
Sabemos que a intenção da serpente era fazer com que Eva comesse
do fruto daquela árvore proibida, então se talvez usarmos de nosso poder de
dedução, poderíamos afirmar que a serpente queria dizer:
“Mesmo que D-us tenha dito, não comereis de alguma árvore do
jardim...
e daí? Vá em frente e coma dessa árvore
”.
Mas, espere um segundo. O melhor argumento que a serpente pode
arranjar foi esse? Isso não parece lá muito digno da “astúcia” com que a
Torá
a descreve. Além do mais, para mim soaria bem mais astuto se a serpente não
lembrasse Eva da ordem divina de não comer daquela árvore. Por que a
serpente insinuaria que Eva deliberadamente desrespeitasse a ordem de seu
Criador?
SER COMO D-US
Basta lermos alguns versos a mais e o argumento da serpente toma
um rumo diferente. Em Gênesis 3:5 a serpente sugere que ela sabe a razão de
D-us ter proibido a eles o acesso ao fruto do conhecimento do bem e do mal:
“Por que D-us sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos
se abrirão e sereis como D-us conhecedores do bem e do mal”
Pondere por um momento nas palavras da serpente. Será que ela
está mentindo ou dizendo a verdade? Eu não sei quanto a vocês, mas para
mim, à primeira vista me parece que ela está mentindo descaradamente. Que
tipo de bobagem é essa que a serpente esta dizendo ao sugerir que D-us
guarda com ciúmes o fruto do conhecimento do bem e do mal porque ele é a
chave para que nos tornemos semelhantes a Ele?
Será que D-us é tão “territorial” assim ao ponto de temer que meros
humanos, por virtude de ingerir algum tipo de fruto com propriedades
“mágicas” se tornassem como Ele e se infiltrassem em seus domínos? Por
favor! A serpente deve estar mentindo.
Mas não há razão para filosofar. O próprio texto nos revela se a
serpente estava mentindo ou dizendo a verdade. O verso que passou agora
pela minha mente aparece pouco depois de Adão e Eva terem experimentado
do fruto proibido. Refletindo sobre o fracasso do homem, D-us decreta que
20

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
agora ele deve ser banido, exilado do Éden. E eis aqui a razão:

D-us
disse: Eis que
o homem tornou-se como um de nós
,
conhecedor do bem e do mal
. Agora, deve-se evitar que ele estenda sua
mão e tome da árvore da vida, e coma e viva para sempre”
(Gênesis 3:22).
Pode parecer impossível, mas a serpente estava dizendo a verdade
quanto a isto. D-us claramente afirma que de alguma forma, aquele fruto
elevou o ser humano, fazendo com que o mesmo se tornasse “semelhante” a
Ele, visto que eles se tornaram conhecedores do bem e do mal. Mas, pense:
como pode ser isso? Se a árvore de fato tinha poderes para que fôssemos
como D-us, por que então Ele decidiu que era melhor que a evitássemos?
Parece bastante blasfema a idéia de que D-us estava com medo de
competição, principalmente competição com Suas próprias criaturas.
Finalmente, como se isso não fosse bastante, leia como o próprio
Altíssimo define o que é “ser como D-us”:
“O homem se tornou como um de nós,
conhecedor do bem e do
mal

Peça para que as pessoas definam D-us para você. Você vai
provavelmente ouvir dizer que D-us é onisciente, que é todo poderoso, que é
um, que é nosso Criador, etc. Mas, será que alguém vai dizer que ser D-us é
conhecer o bem e o mal? Mas é exatamente dessa forma que D-us descreve o
que é ser D-us.
A serpente aquele ser que falava, que andava e que era astuto (como
nós) estava certa. O próprio D-us confirma suas palavras. Ser como D-us
significa “conhecer o bem e o mal”. Agora compete a nós entender o que tudo
isto quer dizer. Pense nisso e até o próximo capítulo.
Referências:
1.
Texto aberto =
Diz respeito à leitura natural, literal e óbvia das Escrituras, em contraste
com o chamado “texto oculto”, uma camada de sentido mais profunda do texto sagrado,
interpretada ou deduzida por meio das regras da hermenêutica judaica.
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De V olt a a o É den
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CAPÍTULO IV
A Verdade Nua
Todo o relato sobre o Éden não passa de vinte e cinco versículos. É
aparentemente muito pouco para relatar eventos que mudaram o curso da
história humana. A
Enciclopédia Britânica
teria devotado a eventos de tamanha
magnitude dezenas de páginas. Nós poderíamos nos questionar: Como pode a
Torá
comunicar algo tão profundo num trecho tão curto?
Uma das formas mais comuns aparentes no texto bíblico para que se
transmita verdades mais profundas é através das “camadas de sentido” que
encontram-se “embutidas” no chamado texto aberto.
Vinte e cinco versos podem não parecer muita coisa, mas certamente
torna-se abundante em sentido se os mesmos estiverem “codificados”. A
tradição judaica ensina que a
Torá
emprega várias técnicas para “codificar” o
texto a fim de transmitir outros “níveis” da mesma verdade. Uma dessas
técnicas é a da “palavra- chave”.
Às vezes, ao ler o texto bíblico da
Torá
você pode perceber que a
narrativa parece sair do seu contexto para usar uma certa palavra, frase ou
idéia de forma insistente, repetitiva até. Quando isto acontece, é uma
indicação freqüente de que aquela palavra, frase ou idéia é a chave para a
“decodificação” do texto, desdobrando-o em diversas “camadas” de
interpretação e sentido, levando o leitor a um entendimento mais rico e
profundo do texto que está estudando.
Acontece que nossa história do Éden contém uma palavra que se
repete algumas vezes. Se você tomar algum tempo para “escanear” a história,
é bem provável que você a ache por si mesmo.
Bem, quer queira você tenha achado ou não, lá vai: nossa palavra é
“nu” ou, a idéia de “nudez”.
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
A ESTRANHA PROEMINÊNCIA DA NUDEZ
A nudez aparece por toda nossa história. Aparece no início, pouco
antes da serpente falar com Eva:
“E eis que estavam nus...e não se
envergonhavam”.
Aparece de novo no final quando D-us faz roupas para Adão
e Eva para esconder sua nudez; aparece ainda no meio da narrativa, no exato
ponto onde atingimos o clímax da mesma: “
E abriram-se os olhos de ambos e
viram que estavam nus”.
Estranho, não é mesmo? Se alguém te pedisse para imaginar como o
ato de comer um fruto que concedesse conhecimento do bem e do mal afetaria
a humanidade, o que você teria dito? Talvez Adão e Eva tenham ficado
imediatamente conscietes de um mundo completamente novo de dilemas que
se desdobrava perante seus olhos: por exemplo, o direito de viver vs. o direito
de escolher morrer; ou então, dez pessoas num barco que vai afundar a menos
que alguém seja lançado fora; o que você faria? Todos os tipos de dilemas e
questões éticas e morais devem ter passado pela cabeça deles. Suas cabeças
deveriam estar girando com tantas possibilidades...
Mas, espere aí. Nada disso! Nenhuma das alternativas acima. Nada
disso parece ter preocupado Adão e Eva. Após terem comido do fruto proibido,
a reação imediata foi perceber que estavam nus. Mas, que coisa esquisita! Por
que conhecer o bem e o mal afeta nossa percepção de nudez? E há “nudez”
também tanto no início quanto no final de nossa história, não esqueça.
Mas, vamos continuar a leitura do texto. Adão come da árvore e
imediatamente se esconde de D-us. Agora, vamos nos perguntar, “por que ele
está se escondendo?”
Pense por um instante. A quem foi dada a ordem de não comer
daquele fruto: ao homem apenas, somente para a mulher ou a ambos? Quem
de acordo com o texto se escondeu após ter comido o fruto: só o homem, a
mulher apenas ou ambos? Não se apresse. Leia bem o texto antes de
aventurar uma resposta.
Pronto? Bem, lá vai a resposta: a ordem for a dada apenas a Adão.
Eva nem sequer havia sido “construída” ainda ( Gênesis 2:15-17). E após
comer do fruto, Adão e Eva se escondem de D-us (Gênesis 3:8), mas
curiosamente o texto hebraico usa o verbo
hitchabe
' [escondeu-se] no singular,
em vez de
hitchab'u
[esconderam-se], o que seria o normal em se tratando de
duas pessoas.
Mas agora as coisas parecem estar ainda mais complicadas, ou não?
Você deve estar lembrado de que dissemos que o primeiro relato
sobre a criação do homem é evidentemente literal, mas o segundo é uma
alegoria, uma parábola que explica temas complexos sobre nossas origens
como seres plenamente conscientes.
23

De V olt a a o É den
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Retomando nosso tema, vamos nos perguntar agora sobre a razão de
Adão para ter se escondido. Leia a passagem e tente entender o motivo pelo
qual ele achou melhor esconder-se de D-us quando ouviu Sua voz no jardim.
Curiosamente, Adão não diz que estava envergonhado pelo que fez,
isto é, pela desobediência e pelo fato de ter comido do fruto proibido. A razão
que ele dá para se esconder é outra, bem diferente da que esperaríamos:

Ouvi sua voz no jardim e temi
porque estava nu
e me escondi”
(Gênesis 3:10)
De alguma forma, a consciência de que estava nu era tão profunda
em Adão, tão perturbadora, que até mesmo obscureceu seu sentimento de
vergonha pelo fato de ter desobedecido a ordem de seu Criador. Ao ser
chamado por D-us no Éden, Adão não ofereceu como justificativa para se
esconder o fato de ter desobedecido ao Eterno; antes, afirmou que sua
principal preocupação era o fato de estar nu.
Por que a nudez é tão importante nesta história? Por que será que a
percepção de nudez da humanidade é a conseqüência natural de comer do
fruto da árvore do conhecimento? E por que esta percepção de nudez é tão
perturbadora ao ponto de ser a única justificativa oferecida pelo homem ao
fato de ter se escondido da face do seu Criador?
Para responder isto, nós deveremos entender que
surpreendentemente, nós ainda não vimos o desfecho da condição de nudez
nesse relato. A “nudez” aparece mais uma vez em nossa narrativa, só que
desta vez, ela vem “oculta” para os leitores da Bíblia em seus próprios idiomas.
Assim, há alguém mais no jardim que também está “nu”. Você é capaz de
determinar quem é?
UMA NUDEZ OCULTA
Se você teve dificuldades para identificar quem mais estava nu no
jardim, acredite: Isto só ocorreu porque você deve estar lendo a Bíblia em sua
própria língua mãe (no caso do Brasil, o português). Na maioria das vezes, isto
acontece porque as versões de que dispomos não conseguem transmitir a
riqueza de significados de uma palavra em hebraico.
Veja, por exemplo, as seguintes passagens:
E ambos estavam nus, o homem e sua mulher, e não se
evergonhavam...E a serpente era o mais astuto dentre todos os
animais do campo...
(Gênesis 2:25 e 3:1)
Muito bem. Ao ler estes versos, você percebe claramente que tanto
Adão quanto Eva são descritos como que estando sem roupas. Mas, no verso
seguinte, há alguém que também é descrito da mesma forma. Não percebeu?
24

De V olt a a o É den
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Bem, uma pequena “aula” de hebraico bíblico.
Va-yihiu shneihem
ARUM
im, ha-adam ve-ishto, ve-lo yitboshashu.
E estavam ambos
nus
, o homem e sua mulher e não se
enveronhavam.
Ve-ha-nachash hayah
ARUM
mikol chayat ha-sadeh...
E a serpente era o mais
astuto
de todos os animais do campo...
Note as palavras em destaque. É interessante que um verso siga
imediatamente após o outro e tenham ambos uma palavra de uma raiz
comum:
ARUM
. Esta palavra hebraica pode significar tanto “astuto” quanto
“nu”. Adão e Eva são chamados de “
arumim
” (plural de
arum
), isto é, “nus”. A
serpente é chamada de
arum
, isto é, astuta. Mas, num espectro mais amplo de
sentido e significado, a serpente também estaria “nua”, se aceitarmos o
sentido da raiz da nossa palavra-chave,
arum.
Assim, logo após descrever Adão e Eva como estando nus, a
Torá
não
por acaso ou mera coincidência, usa o mesmíssimo termo hebraico para
descrever a serpente!
Mas, o que será que tudo isso quer dizer? Bem, no sentido óbvio do
texto, a
Torá
nos informa que a serpente era “astuta', enganosa, perspicaz;
este é certamente o
pshat
(sentido evidente) da passagem. Mas, não parece
ser coincidência o fato da
Torá
ter usado esta palavra em particular para
descrever as intenções duvidosas da serpente. A
Torá
parece sair do seu
contexto ao tomar esta palavra em particular (
arum
) e aplicá-la também
àquele réptil “astuto”.
O que a
Torá
parece querer nos transmitir com isso tudo?
O mistério fica ainda maior quando nos fazemos a seguinte pergunta:
Será que os dois sentidos da palavra
arum
(“nu” e “astuto”) estão relacionados
de alguma forma conceitual ou será que são palavras totalmente não
relacionadas, sem a menor ligação entre uma e outra?
Bem, eu não sei quanto a vocês, mas para mim não me parece muito
“astuto” estar “nu”... À primeira vista, eu não consigo perceber ligação entre os
sentidos do termo. Mas, espere. Vamos interpor os dois sentidos: nu e astuto;
astuto e nu...de alguma forma, os dois sentidos parecem ter alguma coisa em
comum, pois numa segunda reflexão eles são opostos um ao outro.
Eu explico.
25

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Quando alguém está “nu”, não há como ou do que se esconder. O
íntimo do ser está exposto, para que todos vejam. Entretanto, quando se é
“astuto”, age-se maliciosa e falsamente; encobrem-se as verdadeiras intenções
por trás de uma “fachada”, uma “máscara”. O íntimo do ser está encoberto
para que não se exponha e venha a ser visto por todos.
Fascinante, não é mesmo? Os dois sentidos da palavra hebraica
arum
são como imagens em espelho de si mesmos, reflexos opostos de uma mesma
realidade.
Agora isto faz com que nossa pergunta tome uma outra dimensão:
Por que a
Torá
tomaria a mesma palavra que usa várias vezes para expressar
“nudez” e então ao descrever a serpente inverte seu sentido para nos
transmitir uma idéia incrivelmente oposta, para descrever a serpente como
“astuta”?
Será que a Sagrada
Torá
estaria sugerindo que a serpente era
“astuta” mas que de alguma forma ela também estava “nua”? O que isto
poderia significar?
UM ENGANO “INOCENTE”
Se nos atermos ao mero sentido literal do texto poderemos
facilmente verificar que a serpente é um ser biologicamente “nu”, pois como
réptil, ela não possui uma cobertura de pêlos para cobrí-la como ocorre com os
mamíferos. Mas, refletindo com mais profundidade, o que será que a
Torá
quer
dizer quando afirma que a serpente era “astuta” mas que num sentido mais
amplo estava ela também “nua”?
Se “nu” é realmente o oposto de “astuto”, então isso significaria que
a serpente possuia as duas qualidades: ela era ao mesmo tempo simples,
ingênua, pura mas também podia agir com astúcia e sagacidade. Vê-la com
essas qualidades só dependeria do ponto de vista do leitor. Por um lado, a
serpente é astuta porque suas palavras não funcionam para Adão e Eva (eles
de fato “morreriam” caso comessem do fruto); mas, por outro lado, ao comer
daquela árvore os olhos de ambos se abririam e eles finalmente se tornariam
como D-us, conhecedores do bem e do mal – e nesse ponto, a serpente não
mentiu e foi honestíssima – qualidade de quem está “nu”, com o ser a
descoberto, sem máscaras ou fachadas. Vejamos a que conclusões isto tudo
nos levará no próximo capítulo.
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
CAPÍTULO V
Os Motivos da Serpente
Até agora nós estivemos mais interessados em focar as questões
relacionadas à interpretação da passagem bíblica do Éden e sua ampla
simbologia e estávamos deixando de lado talvez o mais importante
personagem da nossa história: a serpente. Quem é ela e quais os motivos que
a levaram a agir daquela forma?
Você já pôde perceber que toda a nossa história não deve ser tomada
literalmente, “ao pé-da-letra”. Já discutimos isso no capítulo III, “O Lado
Escuro do Paraíso”. O que propomos agora é que nos aprofundemos na
simbologia da serpente e dos demais personagens, até que de alguma forma
possamos entender cabalmente a que tudo isso se refere.
Serpentes não falam, não andam e tão pouco são inteligentes ou tão
astutas assim. O texto da
Torá
deve estar dizendo alguma outra coisa. Por
outro lado, a serpente do Éden não é astuta porque algum ser do mal está no
controle dela: a
Torá
deixa claro que ela é astuta porque D-us assim a fez!
Logo, não existe um “diabo” por trás da serpente. A
Torá
deve estar dizendo
outra coisa aqui também.
Veja ao que a “serpente” apelou, perceba os expedientes empregados
por ela na tentativa de seduzir “Eva”. Já analisamos a frase da serpente no
capítulo III:
A frase usada pela “serpente”:
Af ki amar Elokim lo tochlu mikol etz
hagan...
[Mesmo que D-us tenha dito: não comereis de alguma árvore do
jardim...] termina no vazio, sem uma conclusão, mas ela sugere algo para
quem a ouviu, ou seja, “Eva”. Trata-se de uma clara indução, uma tentativa de
persuadir a mulher para que ela tome e coma do fruto proibido. Como
27

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
sabemos disso?
O uso da expressão
af ki
[“mesmo que”, “ainda que”] deixa claro que
trata-se de uma forma de indução. Só que a conclusão da frase é deixada para
a mulher, que responde à frase sedutora afirmando que D-us deu ordem para
que eles não comessem do fruto da árvore que estava no meio do jardim
(Gênesis 3:2-3).
Note agora que
após
a sedutora frase da “serpente”, a mulher
percebeu
que a árvore era “
boa para se comer, agradável aos olhos e era
uma árvore boa para dar entendimento”
(Gênesis 3:6). Vemos vários “níveis
de apelação” aqui. Eva foi seduzida pelo apetite, pela cobiça e pela vontade de
aventurar-se no desconhecido. Em resumo, ela foi dominada pela mais
poderosa força existente em nós: o desejo.
O desejo é a nossa força motriz, é aquilo que nos impele em todos os
sentidos; é como se fosse o vento para um barco à vela, ou o combutível para
a máquina. Não “funcionamos” sem o desejo.
A ÁRVORE DOS DESEJOS
Eu gostaria de compartilhar com todos vocês uma abordagem
desenvolvida pelo Rabino Shimshom Raphael Hirsch, um gigante da exegese
bíblica contemporânea. O Rabino Hirsch sugere que a motivação da atitude da
“serpente” encontra-se em algo tão simples quanto a ênfase da frase usada
por ela. Isto é, dependendo do ponto enfatizado na frase empregada por ela,
poderemos perceber com clareza quais os motivos para que a serpente agisse
como agiu. Hirsch pergunta: O que levou a serpente a tentar seduzir Eva para
que ela comesse daquele fruto?
Hirsch sugere que coloquemos a ênfase na expressão
tenha dito
:
“Mesmo que D-us
tenha
dito
: Não comereis de alguma árvore do
jardim...” --- Caso leiamos a frase dessa forma, podemos perceber que a
serpente não está realmente desafiando a autoridade de D-us em si. O
argumento empregado por ela é muito mais estreito: ela está afirmando que
as palavras ditas por D-us não deveriam ser o foco da atenção de Eva. O
Rabino Hirsch elabora assim o raciocínio da serpente:
“D-us pode ter dito para que vocês evitassem a árvore. Mas, a grande
questão é: Você quer comer dela? Você a deseja? E digamos que você deseja
comer dessa árvore; de onde você acredita que tal desejo vem? Qual a sua
origem? Quem colocou esse desejo em você? Não foi o próprio D-us? Não foi
Ele por acaso quem te criou?”
Em suma, a serpente está de forma indireta apontando para uma
terrível contradição: Por um lado, a voz de D-us te instruiu para não comer do
fruto mas por outro, uma outra forma da mesma voz, a voz de D-us
dentro
de
você --- seu desejo, sua vontade, insiste para que você tome do fruto e
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De V olt a a o É den
experimente-o.
Assim sendo, qual das duas vozes divinas você irá ouvir? A voz de D-
us que vem para você em forma de palavras ou aquela voz divina interior, que
pulsa em você e que anima todo o seu ser? Qual das duas vozes divinas é a
primária, a mais importante?
Da forma como a serpente coloca seu argumento, podemos deduzir
que de acordo com o seu ponto de vista, não é exatamente a voz divina em
forma de palavras a mais importante, mas sim aquela outra que fala dentro de
você, através dos desejos, das paixões, da vontade.
A SERPENTE 'NUA'
Ao insinuar isso, a serpente não está necessariamente sendo
maliciosa ou mesmo falsa. Pelo contrário, ela pode ser vsta como inocente e
honesta! Ou seja, ela está totalmente “nua”, totalmente exposta. Mas, como
pode ser isso? Nós sempre aprendemos que a serpente era uma espécie de ser
dominado por um demônio ou coisa parecida e isso apegou-se muito ao
inconsciente coletivo. É certamente por esta razão que é difícil vê-la como
inocente ou honesta em sua afirmação. Mas, entenda: Ela estava
simplesmente afirmando o que era natural do seu ponto de vista.
Eu explico. A
Torá
usa a figura de uma serpente (um animal) para
transmitir uma idéia bastante profunda.
Conside isso: De que forma D-us faz com que Sua vontade seja
conhecida das serpentes? Como será que a vontade divina se mostra e se faz
conhecida para qualquer animal? Naturalmente o Altíssimo não instrui os
animais intelectualmente. Ele não fala para eles por meio de palavras. Não há
Bíblia ou
Torá
revelada sobre um monte para serpentes, pássaros, lagartos
etc! Mas o fato das serpentes, pássaros e lagartos não possuírem um livro de
leis não significa que eles não possuem “lei” alguma. Muito pelo contrário: os
animais seguem a Lei Divina de modo muito fiel. A “voz” de D-us pulsa
intensamente dentro deles, pois o Ser Divino “fala” aos animais através de
seus instintos, paixões e desejos.
Toda vez que um urso pesca salmões num dos rios do Alasca, toda
vez que as abelhas operárias retiram o néctar das flores – toda vez que um
animal age “naturalmente” obedecendo a voz do seu instinto dentro dele, ele
está nada mais nada menos do que “ouvindo a voz” do seu Criador que palpita
em seu ser.
Assim, do ponto de vista da serpente edênica, a saída para a
contradição entre a voz divina tansmitida por palavras e a outra voz divina
instintiva (das paixões, da vontade e do desejo) é bastante clara e simples:
“Mesmo que D-us tenha dito: não comereis de alguma árvore do jardim, e daí?
A voz real de D-us não fala com você por meio de palavras vindas do exterior
do seu ser; a voz verdadeira de D-us vem do interior, ao âmago da nossa
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existência, é aquela voz que palpita dentro de nós”. De acordo com a serpente,
é essa voz que devemos atender.
Em resumo então, esse é o sutil argumento da serpente, entendido
por muitos como uma espécie de “tentação”. É na verdade uma “tentação” que
atinge a raiz de nossa condição humana, e que estabelece os limites entre nós
e os outros animais.
Qual é a base de nossa condição humana? Qual é o fator que nos
distingüe dos outros animais? Será que a fala é o fator que nos distingüe dos
animais? Mas, caso encontrássemos por aí um animal que pudesse falar, será
que concederíamos a ele todos os direitos humanos? Há alguns anos, certos
cientistas ensinaram a base da linguagem de sinais a alguns chimpanzés; será
que esses chimpanzés poderiam ser qualificados como “humanos” pelo fato de
poderem comunicar-se ainda que de forma primitiva?
Bem, talvez nossa inteligência avançada é o que nos faz humanos.
Mas será que caso encontrássemos um animal muito inteligente por aí, ele
poderia receber todos os direitos civis como por exemplo, o direito ao voto?
Bem, então se a base de nossa condição humana não está na fala,
nem em nossa capacidade de andar, e nem mesmo em nossa inteligência
(qualidades essas também possuídas pela lendária serpente do Éden) --- no
que então está a base de nossa condição como seres humanos de verdade? Eu
argumentaria que a resposta para esta pergunta encontra-se na seguinte
questão:
Como D-us “fala” com você? Qual das duas vozes divinas que
apresentamos é a primária, a mais importante para você?
Se D-us fala com você primariamente através das paixões, dos
desejos e dos instintos, se tudo o que você precisa fazer é examinar seus
desejos e descobrir o que D-us quer de você – bem, então você é um “animal”.
Se D-us tem expectativas a seu respeito, para que você aja além dos
seus instintos, além dos desejos e paixões, se Ele dirige-se à sua mente e
consciência pedindo que você se eleve acima de seus desejos e que canalize-os
construtivamente – bem, então você é “humano”.
O que a serpente está tentando é na verdade confrontar Adão e Eva
quanto à sua condição, qual o sentido de ser humano e não um animal. No fim
das contas, a serpente é realmente
arum –
em todos os sentidos da palavra,
“nua” e “astuta”.
Quando ela fala, “Mesmo que D-us tenha dito: não coma – e daí?” -
ela está sendo honesta, “nua” como explicamos anteriormente, ela está
simplesmente agindo em conformidade com o que se espera de um animal.
Por outro lado, quando atentamos para o argumento da serpente pela
nossa perspectiva, pela perspectiva de Adão e Eva – então o argumento passa
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De V olt a a o É den
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a ser enganoso e astuto, que é o outro sentido da palavra hebraica
arum.
O que é certo para a serpente não é de forma alguma certo para nós.
A serpente alegórica do Éden fala, anda e é inteligente --- mas nós somos
diferentes dela. Nós ouvimos uma voz que não é relevante para ela, dentro da
sua realidade. No fim das contas, não somos “serpentes”, mas sim, humanos.
A BELA E A FERA
O desafio da serpente toma a forma de uma proposta para que o ser
humano comesse do fruto proibido. Se observarmos atentamente, notaremos
que esta proposta surge naturalmente da sugestão da serpente que a voz do
desejo, a voz íntima do nosso ser é a forma primária, básica pela qual D-us
nos transmite sua vontade.
Momentos antes de decidir tomar o fruto, Eva contempla a escolha
diante de si. De acordo com o texto, eis o que aconteceu:
“E a muher viu que a árvore era boa para se comer, e que era um
deleite para os olhos, e que a árvore era desejável para dar conhecimento”
(Gênesis 3:6)
Esta é a forma como a maioria das versões nos transmitem aquela
passagem. No entanto, cabe salientar que a palavra
deleite
como temos aqui
tem o sentido de concupiscência, cobiça.
Na passagem que estamos estudando poderemos encontrar três
níveis de apelação:
O apetite ou o paladar – a árvore era boa para se comer.
A visão – a árvore era um deleite para os olhos.
A mente – a árvore era desejável para dar conhecimento.
Preste bem atenção à segunda frase. Que tipo de coisa pode ser um
“deleite para os olhos”? De que forma esta frase se ajusta às outras duas?
Será que as três proposições estão relacionadas?
Eu acho que estão intimamente relacionadas. Todas estas frases
descrevem como a árvore era um apelativo para Eva esteticamente --- no nível
da beleza, mais precisamente, no nível do desejo, e cada descrição é mais
sofisticada e mais sutil do que a outra.
Explicando:
Um doce pode ser “bom para se comer” - até uma criança de dois
anos sabe disso e aprecia a guloseima. Mas, a beleza de uma rosa é algo que
exige algo mais; tal beleza só pode ser realmente apreciada bem mais tarde,
com mais anos de vida. A beleza é um “deleite para os olhos”, não para o
paladar. E o que dizer daquilo que é “desjável para dar conhecimento”? Esse é
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De V olt a a o É den
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o tipo de coisa que não apela para os sentidos mas sim para a mente. É um
nível de desejo ou de beleza que afeta o mais íntimo de nosso ser. Os poemas
de Emily Dickenson, as sinfonias de Beethoven, um debate elegante e bem
articulado --- tudo isso são coisas que apelam para nossa mente, mas não
necessariamente porque elas são verdadeiras mas porque são belas. De fato,
um belo poema pode ou não expressar verdades, um brilhante discurso feito
por um grande orador pode conter muitas mentiras mas isso é irrelevante. A
mente aprecia tais coisas – e as deseja.
A árvore proibida apela para nós em todos os níveis de estética. Do
mais óbvio ao mais sutil e refinado. O fruto da árvore estava transbordante de
desejo.
Mesmo que D-us tenha dito, não coma – e daí?
Assim, a serpente queria dizer: “O desejo e o instinto são melhores
indicadores da vontade de D-us do que Suas palavras. Coma da árvore, faça
com que o desejo se torne mais forte em vocês e verdadeiramente vocês serão
como D-us.”
Mas o que você poderia dizer, isso tudo tem a ver com o
conhecimento do bem e do mal? Vejamos isso no próximo capítulo.
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De V olt a a o É den
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CAPÍTULO VI
Um Mundo de Brócolis e Pizza
A serpente sugeriu a Adão e Eva como vimos no capítulo anterior
que a forma de se conhecer a vontade de D-us é olhar para dentro de si
mesmo e seguir a voz do desejo. Se você quer comer da árvore, vá em frente
– e mesmo que D-us tenha dito para não comer daquela árvore, e daí? D-us
não nos fala de verdade por meio de palavras [de acordo com o argumento da
serpente]; Ele nos fala por meio dos nossos instintos naturais, aqueles que Ele
mesmo criou em nós. Obedeça a voz dentro de você, seus instintos, suas
paixões e você estará obedecendo a voz primária de D-us.
Mas, o que isso pode ter a ver com o conhecimento do bem e do mal?
- Você poderá perguntar. Por que travaríamos uma batalha sobre o papel
adequado do desejo na
psiquê
humana em relação à uma “árvore” que teria o
poder de nos fazer conhecer o “bem e o mal”?
Bem, então está na hora de examinarmos mais de perto essa árvore
do conhecimento do bem e do mal. Aliás, essa não vai ser uma tarefa fácil.
Não temos mais a tal “árvore” por perto (ainda bem que trata-se de uma
alegoria!). Se não temos uma árvore literal por perto para examinarmos suas
condições temos então o texto da
Torá
que pode nos conduzir ao correto
entendimento dessa alegoria. Os termos hebraicos que descrevem as
características da árvore são perfeitamente inteligíveis e podem deter as
chaves para aquilo que estamos procurando.
A árvore proibida é conhecida em hebraico como
etz daat tov va-rá.
A
tradução convencional seria “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Mas
será que é só isso mesmo ou há algo mais além do que nossos olhos podem
ver?
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
DO QUE É FEITO O VERDADEIRO CONHECIMENTO?
Vamos começar com a palavra
daat
– normalmente vertida como
“conhecimento”. É interessante notar que essa palavra não se limita apenas ao
“conhecimento” no sentido convencional. Na verdade, numa das primeiras
vezes que a raiz verbal que origina a palavra
daat
é usada no Gênesis, ela
aparece num sentido que poucos de nós chamaria de “conhecimento”:
Ve-ha-adam
yadá
et Chavah ishto...
E o homem
conheceu
Eva sua mulher...
Na
Torá
a palavra “conhecimento” tem também o sentido de
intimidade sexual. O uso dessa raiz em especial pela
Torá
significando tanto
“conhecimento” como “união sexual” deve ser significativa. Mais do que possa
parecer há um entendimento profundo do termo
daat
que dá origem a ambos
os sentidos. Mas, qual seria esse entendimento?
Vamos tentar colocar dessa maneira: quando um homem “conhece”
sua esposa, o que ele está procurando? Os cínicos talvez possam dizer que ele
não busca outra coisa senão prazer físico. Mas além do mero prazer físico e
além do próprio instinto de procriação, não há algo mais, algo mais profundo
que ele esteja buscando? Talvez em algum nível ele esteja de fato atrás de
“conhecimento” - conhecimento do misterioso universo feminino, tão diferente
do dele, mas que parece ser algo que faz tanta falta para ele ao mesmo
tempo.
Para reforçar: não é conhecimento intelectual que ele busca. Ele
busca na verdade conhecimento cru, de primeira mão, uma experiência do
feminino de uma forma direta, não filtrada.
No ramo da filosofia chamado de epistemologia corre há muito tempo
um debate sobre do que consiste o verdadeiro “conhecimento”. Os racionalistas
argumentam que o verdadeiro conhecimento é aquele que pode ser
demonstrado pela lógica e pela análise. Outros pensadores entretanto,
argumentam que o conhecimento verdadeiro é obtido pela experiência. É
muito proveitoso podermos racionalizar um conceito ou uma idéia em nossas
mentes – afirmam eles – mas você só pode saber se isto é verdadeiro quando
tal conceito ou idéia acontece no mundo real, quando se demonstra tal
conceito digamos, num laboratório. Se você vê, se pode tocar e experimentar,
então você saberá que é real.
O termo hebraico
daat
(conhecimento) parece denotar este último
conceito, ou seja, conhece-se algo quando se experimenta ou quando se
vivencia. Um centista que faz uma experiência em laboratório consegue
daat,
mesmo que ainda ele não consiga racionalizar ou entender bem aquilo que
experimentou.
34

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
O homem por sua vez, atinge
daat
em relação à sua muher unindo-se
à ela, experimentando-a, mesmo que não consiga expressar por meio de
palavras sua essência misteriosa. A humanidade nesse mesmo proncípio,
atinge
daat
do bem e do mal não intelectualizando conceitos de moralidade e
do que ela se compõe, mas sim, ao experimentar o bem e o mal cruamente de
uma forma direta e objetiva.
Para resumir então: ao obter conhecimento do bem e do mal, nós
não obtemos uma melhor compreensão intelectual do que é certo ou errado.
Nós conseguimos obter um entendimento experimental dessas coisas. Nós
começamos a conhecer o certo e o errado de fora para dentro.
Mas o que tudo isso quer dizer? Isto soa tão abstrato! O que
queremos dizer com “conhecer o bem e o mal” de uma forma crua,
experimental?
Eu sei o que significa conhecer sorvete na forma experimental. Me
dirijo até a sorveteria da esquina e peço um passas ao rum, e assim que acabo
de tomar aquela casquinha, pronto! --- Já obtive meu
daat
(conhecimento
experimental) de sorvete. Mas e quanto ao bem e ao mal? Como podemos
obter conhecimento do bem e do mal dessa forma? Como pode o ser humano
“ interiorizar “ o bem e o mal?
Uma olhada nas palavras “bem” e “mal” em hebraico (
tov
e

)
fornecem as chaves para aquilo que estamos procurando.
CERTO E ERRADO DE FORA PARA DENTRO
Em capítulos anteriores, aludimos à visão de Maimonides sobre nossa
narrativa em sua obra
Guia dos Perplexos
. Nela, o Rambam sugere que Adão e
Eva ja tinham ciência do certo e do errado de alguma forma meio primitiva,
isso antes mesmo de comerem do fruto proibido. De acordo com Maimon, a
arvore
não
deu ao ser humano “consciência moral” quando ele não tinha
nenhuma. Na verdade, o homem já possuia essa “consciênica moral”, mas o
fato de ter comido do fruto proibido transformou essa consciência de uma coisa
para outra.
Em resumo: antes de comer do fruto, nós não chamaríamos as
escolhas virtuosas de “bem” e tampouco chamaríamos as escolhas vis de
“mal”; nós tínhamos então uma outra forma de pensar sobre estas coisas; nós
usavamos outros termos para definir isto.
Mas qe termos seriam esses, essa forma mais “precisa” de encarar as
coisas? Bem, de acordo com Maimônides, no mundo antes da árvore, naquele
mundo primitivo, as escolhas virtuosas seriam chamadas de “verdadeiras” e as
escolhas repreensíveis seriam chamadas de “falsas”. Resumndo, fazer a coisa
certa seria “verdadeiro”, e fazer a coisa errada seria “falso”.
Mas o que será que o Rambam queria dizer com isso? À primeria
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vista parece bizarro. A palavra “falso” parece ser bem melhor para descrever
que 2+2=5 do que para descrever o ato de se roubar um banco!
O que será que realmente significa ver a moralidade como um
conjunto de escolhas entre o “verdadeiro” e o “falso”? E qual é a diferença no
mundo posterior à árvore no qual chamamos tais escolhas de “boas” ou “más”?
Bem, fica difícil determinar ocm precisão todas essas coisas e
Maimônides não elabora muito o seu argumento; entretanto há uma maneira
pela qual poderemos entender melhor o ponto onde ele quer chegar. Vamos
pensar: De que maneira as coisas “verdadeiras” diferem das coisas “boas”?
Quando eu digo que algo é “verdadeiro” eu estou descrevendo a
realidade objetiva. Estou dizendo que algo está lá – é real quer eu queira ou
não, quer eu goste ou não: trata-se de algo “verdadeiro”. Se estivermos
falando de moralidade como questões que envolvem o verdadeiro e o falso
então isso significa que fazer escolhas morais envolve o discernimento de algo
objetivo; envolve determinar qual é a coisa certa a se fazer – o que o meu
Criador espera de mim e tentar dessa forma alinhar meu comportamento
àquela “verdade”.
Como então vemos a virtude de forma diferente quando nós a
chamamos de “boa” em vez de “verdadeira”? Enquanto a palavra “verdade”
tem o sentido central de “real”, as palavras “bom/bem” não têm um sentido
tão objetivo assim. Por exemplo: qual o outro sentido da palavra “bom” além
daquilo que é eticamente correto? Muito simples: Aquilo que é agradável,
desejável ou prazeiroso. Quando eu digo que algo é “bom” o que eu estou
realmente afirmando ainda que de forma sutil é que eu aprovo tal coisa, que
ela é desejável.
Talvez então o que Maimônides propõe seja que a mudança de um
mundo do verdadeiro e do falso para um mundo do bem e do mal tenha sido
uma mudança entre um mundo primevo onde minha escolha essencial era
objetiva para um mundo mais subjetivo, um mundo no qual meu desejo se
intromete, tornando-se parte inescapável do cálculo moral.
Como já sugerimos no capítulo anterior, a “árvore do conhecimento”
estava profundamente associada ao desejo – ela apelava para nós em todos os
níveis estéticos concebíveis, do mais básico (paladar) ao mais profundo (a
mente). Assim, talvez a misteriosa árvore do conhecimento fosse realmente
uma árvore do desejo. E talvez a conseqüência mais fundamental de nossa
decisão de comer dela seja simplesmente essa: O papel que o desejo passaria
a desempenhar em nossas vidas mudaria para sempre.
Explicando: No mundo anterior à árvore, o desejo era mais facilmente
controlado, era parte natural do homem – mas uma parte que estava em
equilibrio com o resto de nosso ser. O desejo não podia obliterar, obscurecer
nossa visão das coisas. Mas, no mundo posterior à árvore, isso não pode ser
mais tomado como certo. O desejo passou a desempenhar um papel mais
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crucial no perfil da psiquê humana. Ele está sempre presente, nos “bastidores”,
sempre uma força com a qual temos que lutar. O desejo passou a ser uma
forma de “lente” pela qual vemos as coisas. Eu não vejo mais um mundo claro
de “verdadeiro” e “falso”; eu vejo um mundo novo do “bem” e do “mal”.
ESCOLHENDO ENTRE O BRÓCOLIS E A PIZZA
Se isso ainda parece abstrato, vamos exemplificar esses conceitos.
Vejamos como usamos hoje em dia os conceitos de “verdadeiro” e “falso” --- e
“bem” e “mal”. Se prestarmos bastante atenção poderemos até perceber o eco
do entendimento de Maimônides quanto à essas idéias.
Na prática de arco e flecha o objetivo é atingir o alvo. O alvo está ali
bem à sua frente e ele é o seu objetivo, ele é real e quer queira quer não, se
vcê não acertá-lo de forma visível a todos ao redor, você terá falhado e perdido
de vista seu objetivo. O interessante é notar que no hebraico bíblico, a palavra
chet
que significa “pecado” tem o mesmo sentido de “errar o alvo” como no
exemplo que demos do arco e flecha (veja Juízes 20:16). Na verdade quando
eu vejo as decisões morais como escolhas entre o “verdadeiro' e o “falso”, isto
significa que estou tentando acertar um alvo – estou tentando discernir as
expectativas do meu Criador em relação a mim para agir em conformidade
com elas. Pecar não tem muito a ver primariamente com penalidade e culpa –
tem muito mais a ver com “errar o alvo”, uma falha na tentativa de me alinhar
com a realidade chamada 'vontade do meu Criador'.
Vamos falar agora um pouco sobre o outro lado da moeda. Quando
uma criança empurra um prato de brócolis porque diz que o legume é “ruim” e
prefere pizza porque é “bom”, ela não está na verdade criticando as qualidades
e os benefícios nutricionais da comida. Ela está te dizendo algo sobre o que ela
gosta e o que não gosta. De certa forma a criança está falando mais sobre ela
mesma do que sobre a comida.
Assim, quando a
Torá
fala sobre “conhecer o bem e o mal” é uma
forma simples de demonstrar uma nova maneira de encarar as escolhas
morais. Sim, eu ainda estou tentando entender o que D-us quer de mim, só
que agora há um novo fator presente que pode obscurecer minha visão: não é
só mais sobre aquilo que D-us deseja; agora é também sobre o que eu desejo.
A minha vontade própria é agora parte constante e inescapável de todo o
quadro. Eu passei a ver o bem e o mal de fora para dentro. Eu certamente
posso me elevar acima desses desejos, mas a questão é que isso não é tão
simples quanto parece e mais: será que eu realmente quero me elevar acima
deles?
A razão pela qual isso não é tão simples assim é que neste mundo
novo e ainda não desbravado do bem e do mal o quadro que eu tenho do que
é certo e que vale a pena não representa necessariamente as coisas do jeito
que elas realmente são. Aquilo que é meramente “bom”, desejável do meu
ponto de vista pode ser astuciosa e sutilmente mascarado como “verdadeiro”.
Quando eu encaro a vida através do filtro de minha própria subjetividade, eu
posso pensar que “x” é a vontade do Criador... entretanto na maiora das vezes
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trata-se isso sim da minha
própria
vontade!
TODOS OS DILEMAS MORAIS SÃO IDÊNTICOS?
Para que realmente possamos sair do domínio da teoria e aplicar
essas idéias no sentido prático, vamos falar do “verdadeiro X falso” e do “bem
X mal” dentro do contexto de alguns dilemas morais que tanto eu quanto você
enfrentamos no curso de nossas vidas.
Tente pensar um pouco pois abaixo você encontra uma lista de
diversos dilemas morais hipotéticos. Sua tarefa será dividí-los em duas
listagens – assim, tome uma folha de papel, trace uma linha de cima para
baixo (fazendo duas colunas) e nomeie a primeira “coluna A – dilemas reais” e
a outra, “coluna B – dilemas ilusórios”. Como você dividiria essa lista? Eis
abaixo os exemplos:
1. Desligar os aparelhos que mantém viva uma pessoa que está em
coma e desenganada pelos médicos.
2. Minha mãe já está com idade avançada e precisa de ajuda para
organizar a casa; mas meu filho também precisa de ajuda nos
estudos para o teste final da escola. Com quem devo passar a
tarde?
3. Carlos é meu melhor amigo e precisa trabalhar para ajudar sua mãe
doente. Ontem percebi que ele estava “colando” no teste que fez em
minha empresa. Devo omitir aquilo que vi ao meu chefe?
4. É uma noite escura e chuvosa no centro da cidade. Você engata a ré
no seu modesto carro popular para sair do estacionamento
quando ouve o som de uma batida de metal contra metal. Você sai
do seu carro e vê que atrás há um luxuoso carro importado –
com um parachoque amassado! E agora? Você olha para todos os
lados e não há ninguém na rua. Você deixa um recado com o seu
número para combinar o conserto?
Os dilemas se dividem naturalmente em dois grupos. Três dos
dilemas acima são reais. Um deles, porém, é fundamentalmente ilusório. Três
desses dilemas existem de fato, não importando se você vive num mundo de
“verdadeiro e falso” ou do “bem e do mal”. Um deles, todavia existe apenas
num mundo misto de bem e mal, pois no mundo do “verdadeiro e falso” ele se
dissipa como fumaça. Mãos à obra a até o próximo capítulo.
38

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
CAPÍTULO VII
Um boxeador chamado 'Desejo'
No capítulo anterior, discutimos sobre dilemas morais e eu propus
uma lista de deles que você deveria classificar como “reais” ou “ilusórios”. Dos
quatro dilemas propostos um deles eu argumentei que era puramente ilusório,
inexistente. Vamos rever a lista logo abaixo:
1. Desligar os aparelhos que mantém viva uma pessoa que está em
coma e desenganada pelos médicos.
2. Minha mãe já está com idade avançada e precisa de ajuda para
organizar a casa; mas meu filho também precisa de ajuda nos
estudos para o teste final da escola. Com quem devo passar a
tarde?
3. Carlos é meu melhor amigo e precisa trabalhar para ajudar sua mãe
doente. Ontem percebi que ele estava “colando” no teste que fez em
minha empresa. Devo omitir aquilo que vi ao meu chefe?
4. É uma noite escura e chuvosa no centro da cidade. Você engata a ré
no seu modesto carro popular para sair do estacionamento quando
ouve o som de uma batida de metal contra metal. Você sai do seu
carro e vê que atrás há um luxuoso carro importado – com um
parachoque amassado! E agora? Você olha para todos os lados e não
há ninguém na rua. Você deixa um recado com o seu número para
combinar o conserto?
E daí? Você conseguiu identificar o impostor?
Se você chegou à conclusão que o último dilema é o ilusório, ou seja,
o de número 4 então estamos obtendo bastante progresso; caso contrário,
ainda assim poderemos ser amigos.
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Se você se encaixa nesse último perfil, e não entendeu muito bem o
que eu digo, vamos detalhar. Note que os três primeiros dilemas compartilham
uma certa qualidade básica. Há escolhas entre ideais que competem um com o
outro. Cada ideal é nobre e válido de sua própria forma, e o dilema surge
apenas porque os dois ideais são forçados a competir um contra o outro.
Tome como exemplo o primeiro dilema. Todo mundo concorda que
prolongar a vida é algo nobre e todos também concordam que melhorar a
qualidade de vida é também um nobre ideal. Mas, o que ocorre quando você
se vê obrigado a escolher entre um e outro?
Considere agora o terceiro caso: a honestidade é realmente algo
válido e que todos devemos buscar; por outro lado, a lealdade (isso em relação
aos amigos e nas relações de trabalho) também é um ideal nobre a ser
buscado. Mas o que fazer quando cada um desses nobres valores nos levam à
uma direção diferente? Considere o segundo caso agora: eu tenho obrigações
morais tanto com minha mãe idosa quanto com meu filho que mau começa a
viver – como saio dessa? Quais critérios poderei usar para pesar minhas
obrigações tanto com um para com o outro?
O fato é que todas essas escolhas são genuínas. Há na verdade dois
boxeadores no ringue, dois valores competindo entre si. A pergunta é: quem
vencerá? Qual será o valor que deve prevalecer? Como meu Criador espera
que eu aja?
Agora, vamos pensar sobre o último caso. Está escuro e a noite muito
chuvosa; ninguém está me vendo e eu fico pensando se devo ou não deixar
um bilhete com meu número para que mais tarde o proprietário do carro
luxuoso possa me contactar a fim de que eu pague pelo conserto --- afinal de
contas, eu fui o “autor' daquela façanha! Vamos tentar identificar os dois ideais
que competem aqui. Bem, em primeiro lugar, há a questão da honestidade. A
honestidade pede que eu deixe o recado com meu número. Ok, mas e quanto
ao contra-argumento? Pense cuidadosamente...
Não existe
nenhum
contra-argumento!
Um minuto! Se não há um segundo ideal, um contra-argumento,
então por que é tão dificil saber o que fazer? Uma questão desse tipo não é
algo com o que deveríamos nos preocupar, pois a honestidade reivindica uma
ação positiva e imediata. Há apenas um “boxeador no ringue”, logo ele deveria
vencer por w/o.
Mas, as coisas não são tão simples quanto parecem. Há sim um outro
“boxeador” no ringue, mas não trata-se de um ideal --- o nome desse
“boxeador” é
desejo
.
40

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
UMA LUTA CONTRA O IRREAL
Nesse último dilema, a “batalha” está sendo travada entre um ideal
(a honestidade) e o que
você
prefere fazer. Os dois “boxeadores” chamam-se
simplesmente: Honestidade
versus
O fato de que você não quer deixar o
recado.
É claro que não é bem assim que o seu cérebro apresenta diante de
você essas questões. Vamos ouvir o nosso “diálogo interior” enquanto você
examina o pára-choques amassado do carro importado, lutando para tomar a
decisão:
“Sabe, eu até entendo que eu tenho que deixar aquele recado, mas...
espere! Será que fui eu mesmo que fiz este estrago? Quer dizer, eu ouvi
mesmo um barulho ao dar a ré, mas talvez eu tenha passado por cima de uma
lata de refrigerante junto ao meio-fio, ou sei lá. E para dizer a verdade eu mau
toquei nesse carrão... será que isso seria suficiente para que eu deixasse um
recado com meu número de telefone para depois pagar o conserto? E além
disso, o que esse sujeito estaria fazendo bem aqui a essa hora com o seu
brinquedinho caro estacionado logo atrás do meu carro? Sinceramente eu
acredito que me sentiria um perfeito idiota se o para-choques já estivesse
amassado e sem saber disso, eu deixasse o recado. E ainda que eu tivesse
feito este estrago, não significa que o dono deste carrão perderia dinheiro,
afinal, é para isso que existe o seguro: a poderosa companhia de seguros pode
muito bem arcar com o prejuízo”.
E assim, você se “convence” de que é muito
virtuoso
sair sem olhar
para trás. É Robin Hood contra as grandes empresas de seguro... é o
coitadinho contra os ricos e arrogantes; é você contra a sua própria
ingenuidade – você pensa: Será que se ele estivesse em meu lugar deixaria
um recado para mim a fim de pagar o conserto do meu carro?
Mas todo esse raciocínio que
você
desenvolve não passa de falácia. É
você
mesmo que cria esses “boxeadores” para que lutem contra a honestidade
– eles de fato
não
existem,
nunca
estiveram lá. Trata-se de uma luta contra o
irreal, os “boxeadores” são todos eles, meros “fantasmas”.
O nome do “boxeador” que
você
criou para lutar contra o outro (a
honestidade) é simplesmente
desejo.
Seja bem-vindo ao mundo do bem e do mal.
OS JOGOS MENTAIS DO DESEJO
Um fascinante
midrash
faz eco a essa idéia. Note porém, que os
midrashim
não devem ser tomados literalmente. Os comentaristas tradicionais
desde Luzzato até ao Maharal de Praga raramente tomavam suas palavras ao
pé-da-letra. A idéia do
Midrash
é que você leia as “entrelinhas”, e investigue o
que está sob o manto da narrativa. Os segredos e as grandes verdades
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
contidas ali somente são reveladas àqueles de espírito aberto que ousam olhar
sob o manto da narrativa a fim de entender a mensagem e o ponto abordado
pelos sábios.
Dizem os sábios que ao morrer a pessoa ascende ao céu e ali dá-se-
lhe o direito de contemplar a sua
yetzer hará
(inclinação para o mal); se a
pessoa era justa aqui na Terra, a usa inclinação aparece como uma grande
montanha. Entretanto, se era ímpio ela lhe aparece como um pequeno monte.
Ambas as pessoas ficam perplexas: o justo por ter conseguido superar a
montanha, enquanto que o ímpio, por perceber que um pequeno monte pôde
detê-lo.
Um amigo uma vez me sugeriu uma explicação interessante. Talvez a
diferença entre o justo e o ímpio não esteja em quem tem a maior ou a mais
intensa inclinação para o mal. Acredito que a diferença esteja no fato de que a
pessoa ímpia sucumbiu à inclinação para o mal, enquanto que o justo, não ---
e isso muda radicalmente o que a pessoa vê quando olha para trás; O justo vê
o desejo ainda não satisfeito enquanto que o ímpio vê a aparência do desejos
após ter se entregado a ele. Quando o desejo ainda está por ser saciado, ele
parece uma montanha. Pouco antes de você comer uma torta de chocolate,
você não pode imaginar coisa mais deliciosa; Mas através do “espelho
retrovisor”, o desejo aparece de forma bem diferente. Após ter comido o último
pedaço, a “montanha” desaparece, e você agora vê a realidade como ela é. A
torta estava deliciosa pelos poucos minutos que durou, e agora você tem a sua
frente várias horas na academia para dar um fim à todas aquelas calorias que
você acumulou ao se deliciar com aquela fina iguaria.
Estas são as armadilhas da subjetividade. No mundo posterior à
árvore do conhecimento do “bem e do mal”, um dilema nasce no centro da
cidade numa noite escura e chuvosa. O desejo, com toda a sua grandeza e
poder habita imperceptível dentro de nós mesmos, se escondendo facilmente
atrás de “boxeadores fantasmas”. Neste mundo subjetivo, o mal pode aparecer
para nós envolto em belas roupagens – e quando isso ocorre, é difícil saber a
diferença entre aquilo que realmente é verdadeiro e virtuoso e aquilo que é
meramente sedutor.
OS PRINCÍPIOS DO DESEJO
O argumento da serpente permanece talvez como um exemplo
clássico deste tipo de sedução mascarada ou travestida de virtude. Da mesma
forma que aquela nossa “voz interior” cria um “boxeador fantasma” para lutar
contra o outro (a honestidade) no quarto exemplo que demos, a escolha de
comer ou não daquela árvore pode ter sido entendida pela mente de Eva como
uma forma de um legítimo dilema.
“Qual das vozes divinas devo ouvir? A voz do desejo que está em
mim (cujo autor é o próprio D-us) ou a voz que me deu a ordem por meio de
palavras?” Esta parece ser uma questão bastante razoável. Havia boas razões
para que se comesse daquela árvore; havia boas razões para pensar que seria
42

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
certo, bom e louvável fazer com que o desejo desempenhasse um papel mais
ativo em nossas vidas do que ocorria antes. Afinal de contas, a serpente não
estava de todo errada quando sugeriu que o instinto e o desejo constituem-se
numa das muitas formas e maneiras pelas quais D-us “fala”. As paixões vêm
realmente de D-us e experimentá-las parece ser parte essencial do que nos
torna humanos. O que seria por exemplo, acordar pela manhã sem o menor
senso de ambição, ou olhar para uma grande obra de arte sem ter o desejo
pelo que é belo, o que seria de nós se o romance fosse insípido e
desinteressante, ou se a poesia não pudesse nos tocar a alma? Poderíamos até
nos perguntar se valeria a pena viver a vida sem
desejo
. De alguma forma e
até certo ponto, o desejo parece ser o motor de nossa própria existência.
Bem, tudo isso é certamente razoável. Mas assim como o caso da
noite escura e chuvosa no centro da cidade, há algumas entrelinhas neste
dilema. Os argumentos intelectuais mascaram uma outra agenda. Mesmo
quando Adão e Eva viviam no mundo do verdadeiro e do falso, o mundo do
“bem e do mal” acenava para nós e o desejo começou a desempenhar sua sutil
influência.
O leitor atento notará que quando Eva parafraseia para a serpente a
ordem divina de evitar a árvore, ela muda alguns pontos daquilo que D-us
originalmente falou. À primeira vista, as mudanças que ela faz na ordem
parecem inócuas. Por exemplo, Eva identifica a árvore do conhecimento do
bem e do mal como estando “no meio do jardim”. Mas se voltarmos ao capítulo
2 do Gênesis, você verá que Eva não foi precisa na sua informação. Não era
exatamente a árvore do conhecimento que estava no meio do jardim. Se você
ainda considerar aqueles versos mais atentamente, você vai perceber que esta
não é a única mudança que ela faz na ordem --- há muitas outras com certeza.
E isto me faz lembrar de nosso trabalho de casa: Pegue uma folha de papel e
tente fazer uma lista destas discrepâncias para que possamos abordá-las no
próximo capítulo: “De que forma Eva transmite errado a ordem de D-us para
que eles evitassem a árvore do conhecimento?” Quando você terminar sua
lista, pergunte para si mesmo: Por que Eva mudou estes detalhes? Bem, talvez
Eva tenha sido vítima de falha de comunicação – Quem sabe Adão transmitiu-
lhe o recado de forma errada --- talvez. Mas eu acho que havia algo mais...
Veja se você consegue encontrar um padrão às várias discrepâncas
entre a ordem original e a paráfrase de Eva para a serpente. Eu acredito que
existe um padrão – abra sua Bíblia e veja se você concorda comigo. Até lá.
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CAPÍTULO VIII
O olho daquele que contempla
No capítulo anterior eu pedi para que você comparasse a paráfrase de
Eva quando ela citou a ordem divina para que eles não comessem o fruto da
árvore proibida. Os dois relatos são claramente distintos. Algumas das
diferenças resultam de falta de precisão quando Eva cita a ordem de D-us.
Outras, porém, são meras mudanças de ênfase. Mas apenas para irmos direto
ao ponto, minha pergunta é: Tomadas como um todo, será que essas
mudanças sugerem um modelo de alguma forma ou será que tratam-se
apenas de citações erradas? Vamos reproduzir os versos em questão a fim de
que seja mais fácil compará-los. Ei-los aqui:
A Ordem Original de D-us
E D-us fez surgir da terra todo tipo de árvore boa para se contemplar
e boa para se comer e a árvore da vida no meio do jardim e a árvore
do conhecimento do bem e do mal.
(2:10)
E D-us ordenou ao homem dizendo: De todas as árvores do jardim
poderás comer livremene. Mas da árvore do conhecimento do bem e
do mal não comerás pois no dia em que dela comeres certamente
morrerás.
(2:16-17)
Eva citando para a Serpente a mesma ordem
E a mulher disse para a serpente: Do fruto das ávores do jardim nós
poderemos comer. Mas do fruto da árvore que está no meio do
jardim D-us disse não comereis dele , nem nele tocareis para que
não morrais.
(3:3-4).
Muito bem, vamos às diferenças. O que você conseguiu achar?
Aqui está minha lista:
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Localização da árvore proibida.
Eva identifica a árvore proibida como

se a mesma estivesse “no meio do jardim”. Na verdade de acordo com
2:10 era a árvore da vida que encontrava-se ali, e não a do
conhecimento. D-us não impôs nenhuma restrição quanto ao comer da
árvore da vida como sabemos. O local onde a árvore proibida se
encontrava é incerto. [os versos afirmam que D-us colocou “a árvore da
vida no meio do jardim”, e a árvore do conhecimento do bem e do mal”.
Da forma que a frase foi colocada no texto, a expressão “no meio do
jardim” modifica a “árvore da vida”, somente e não a segunda. Se ambas
estivessem no mesmo lugar, o fraseado seria: '...a árvore da vida e a
árvore do conhecimento do bem e do mal no meio do jardim”].
Tocar no fruto era contra as regras?
Eva diz para a serpente que a

proibição incluía não tocar no fruto da árvore do conhecimento. Na
ordem original, só
comer
do fruto era proibido.
Fruto vs. árvore.
D-us fala sobre uma árvore proibida. Eva menciona

um fruto proibido. Na prática talvez é tudo a mesma coisa. Mas a ênfase
é certamente diferente.
A morte é uma certeza?
D-us diz que se eles comessem da árvore eles

certamente morreriam. Eva sugere que seria melhor que ela e Adão não
comessem da árvore, “para que não” morressem. D-us afirma que eles
certamente
morreriam. Eva sugere não uma certeza, mas uma
probabilidade, uma possibilidade.
Quando é que a morte torna-se uma realidade?
D-us diz que a

morte se tornaria uma realidade
no dia
em que eles comessem da árvore
proibida. Eva não menciona nada sobre o tempo.
"Todas" as árvores ou não?
Usando linguagem repetitiva onde o verbo

comer
em hebraico é usado duas vezes [
achol
tochel
], D-us enfatiza que
Adão e Eva podem comer de todas as árvores do jardim, exeto da árvore
do conhecimento do bem e do mal. Ao mencionar para a serpente as
árvores das quais eles poderiam comer, Eva não usa a mesma ênfase
que for a usada por D-us, isto é, ela não repete o verbo comer e ainda
não usa a palavra “todas” como D-us usou. Sua frase é bem menos
enfática do que a ordem original dada pelo Eterno.
HÁ UM MODELO AQUI?
Bem, e agora? O que faremos com todas essas informações? Há
alguma razão por trás de todas essas discrepâncias , algum bom motivo que
possa justificar as modificações que Eva fez ao “explicar” para a serpente a
proibição proferida pelo Altíssimo?
Me parece que as mudanças que Eva fez ao relatar a ordem de D-us
realmente querem dizer alguma coisa. Podemos até teorizar que Eva
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
deliberadamente distorceu a ordem de D-us ou que talvez ela a tenha
entendido mal. Eu não posso desprovar conclusivamente essas teorias. Mas há
na minha opinião uma terceira possibilidade, e essa me parece mais plausível:
As distorções que Eva fez ao relatar a ordem divina não foram deliberadas de
forma alguma. Pelo contrário, pega “desarmada” pela serpente e no calor do
momento, tudo o que ela disse era na essência como as coisas lhe pareciam.
Era de fato a forma como ela queria vê-las.
Em outras palavras, as sutis distorções nas palavas de Eva não
aludem provavelmente a um mal entendido intelectual daquilo que D-us tinha
dito. Era isso sim uma tentativa sutil da mente de Eva de colocar a ordem de
D-us sob uma perspectiva diferente. Explicando: Se o comer da árvore
marcava o início de um papel mais profundo do desejo na vida da humanidade,
então o curto diálogo entre Eva e a serpente nos dá o primeiro recurso para
estudarmos a mecânica oculta pela qual o desejo pode confundir nossa
percepção das coisas como elas realmente são.
Pense nisso: quando nós queremos algo que nós não podemo ster ou
não devemos ter – mas queremos mesmo assim – quais são as coisas que
dizemos para nós mesmos? Como exatamente o desejo começa a
desempenhar sua “mágica”? O que nós dizemos a fim de convencermos a nós
mesmos que é certo ter aquilo que desejamos?
Nós olhamos para a realidade à nossa frente e começamos a fazer
um jogo que envolve o exagero de certos aspectos e a minimização de outros.
O jogo continua, mais ou menos de acordo com as seguintes linhas:
Nós podemos começar exagerando a extensão da restrição imposta sobre

nós. [p.ex., até mesmo
tocar
no fruto é proibido]. É fácil racionalizar
sobre algo errado se exagerarmos como é difícil permanecer de acordo
com as regras.
Como meus pais podem querer que eu nem mesmo
chegue perto do pote de biscoitos? Eu sei que eu não devo comer
aqueles biscoitos, mas como eles podem querer que eu evite até mesmo
entrar na cozinha?
Na mesma medida eu possso minimizar o significado daquilo que eu

posso
ter. Na verdade, eu posso comer mesmo de todas as árvores do
jardim, exceto de uma. Há milhares de árvores no jardim das quais eu
fui incentivado, quem sabe até ordenado comer, mas os jogos mentais do
desejo mudam a ênfase: Certamente nós podemos comer das árvores
(note a ausência do termo
todas,
existente na ordem divina original),
mas nós não podemos sequer
tocar
naquela que está no meio do jardim
(note a adição do termo
tocar
à ordem divina original).
Quais são as conseqüências da transgressão? Isto é algo que

costumamos trivializar também.
Nós não vamos morrer imediatamente,
certo? Não. Mesmo que D-us tivesse a intenção de dizer que nós hoje
nos tornaríamos mortais ---- a morte em si não ocorreria senão anos
depois. Por que então eu deveria ficar longe da árvore senão pelo fato de
46

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
que eu eventualmente pudesse morrer?
Finalmente, eu posso exagerar o significado da coisa que eu não posso

ter. Ela se torna o meu foco principal, o eixo em volta do qual meu
mundo começa a girar. Lembre-se: Qual árvore encontra-se no meio do
jardim? Para qualquer observador, o centro de uma floresta pode ser
apenas a árvore para a qual ele está olhando. Para D-us, o centro ou o
meio do jardim, a árvore que ocupa o Seu foco é a árvore da vida –
árvore essa que Ele jamais proibiu. Para Eva no entanto, a árvore da qual
ela
não
poderia comer torna-se o centro de suas atenções, ela a coloca
no meio do jardim, posição essa que a árvore jamais ocupara no plano
divino. Assim, meu desejo foca no proibido e o amplia, não
objetivamente porque aquilo é de fato importante para mim, mas sim,
pelo simples fato de que eu
não
posso tê-lo.
Ao retratar a conversa de Eva com a serpente da forma que faz, a
Torá
parece estar construindo para nós um caso para estudo na dinâmica do
desejo. Aqui está o que parece, o texto parece estar dizendo, lutar com o
boxeador “fantasma”, o boxeador chamado
desejo.
De formas sutis, as coisas
podem começar a parecer maiores ou menores do que realmente são. A
advertência que isso implica é clara: Não seja tão afoito para abraçar os
argumentos que
você
construiu de forma 'impecável' a fim de justificar a ação
de comer do fruto proibido. Primeiro, faça a si mesmo a seguinte pergunta:
Será que estou vendo as coisas da forma que elas realmente são ou será que
as estou vendo da forma que eu mesmo prefiro vê-las? Mesmo que eu não
esteja mentindo para mim sobre os fatos, será que não estou brincando com a
forma pela qual eu estou enfatizando as coisas? Será que não estou
exagerando na importância de certas coisas e minimizando o sentido de
outras? Lembre-se: Neste mundo subjetivo no qual vivemos, a “realidade”
depende do olho daquele que a contempla.
AS PEÇAS QUE FALTAM NO QUEBRA-CABEÇAS
Se o desejo desempenhou um papel tão importante na primeira
decisão de Adão e Eva (comer ou não do fruto proibido), como se fizeram
sentir neles as conseqüências de tê-lo comido? Como o fato de terem comido –
ou mesmo a luta para decidir se comeriam ou não – pode tê-los afetado? De
que forma isso também nos afetou e nos mudou como seres humanos?
Para entendermos isto, nós precisamos olhar cuidadosaente para o
resto de nossa história, a saber, o que ocorreu após terem comido daquele
fruto. Vamos analisar isso tudo de forma simples à princípio. Quais são os
eventos que ocorrem à partir de então? Vamos alistá-los:
Adão percebe que está nu e se esconde de D-us.

D-us pergunta para Adão: Onde estás?

Adão responde que ele se escondeu porque teve medo por estar nu.

Após ter rejeitado as explicações de Adão e Eva quanto ao terem comido

do fruto proibido (“ela me deu e eu comi”, “a serpente me enganou”), D-
us impõe várias punições sobre eles, incluindo a morte, a expulsão, o
47

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
trabalho penoso e a multiplicação das dores de parto.
Anteriormente nós apontamos alguns estranhos aspectos desses
eventos. Mas na realidade, a lista de dificuldades é ainda maior do que aquela
que nós mencionamos naquele momento. Cada um desses acontecimentos
pós-Éden é como eu penso, perturbador de seu próprio modo. Vamos analisar
um a um e ver como isso tona-se claro:
Adão percebe que está nu e se esconde de D-us.
Lá no início de nosso
estudo, eu havia mencionado que a ênfase na nudez parecia estranha.
Por que será que a percepção nudez é a conseqüência natural do ato de
terem comido de um fruto que transmite o “conhecimento do bem e do
mal”? Após receber este conhecimento, Adão não torna-se ciente de um
novo e desconhecido reino de dilemas morais. Em vez disso ele
simplesmente percebe que está nu. Por que?
D-us pergunta onde Adão está.
Um minuto! Você está querendo dizer
que o Eterno D-us não podia encontrar Adão? Por que o D-us onisciente
estaria fazendo uma pergunta para qual Ele já conhecia a resposta?
Adão responde que ele se escondeu porque teve medo por estar nu.
Leia o texto novamente e veja se você teria essa mesma reação se
estivesse no lugar dele. Bem, em primeiro lugar, é deveras estranho que
Adão afirme que se escondeu pelo fato de ter “medo” porque estava nu.
Se estivéssemos no lugar dele, nós provavelmente diríamos que
estávamos com vergonha pelo fato de termos desobedecido a ordem de
D-us. Mas, por alguma razão, na mente do homem esse sentimento de
vergonha é obliterado, obscurecido por algo ainda mais aterrorizante: a
consciência de sua própria nudez. Mais uma vez, retomamos o tema da
nudez: Por que isso o afeta de forma tão crucial? Mas a questão é um
tanto mais profunda: Coloque-se de novo no lugar de Adão. Se você
tivesse que se esconder por estar nu, qual a razão que você daria por
estar escondido? Eu não sei quanto a vocês, mas eu me esconderia por
vergonha de estar naqula situação. Mas, estranhamente Adão aponta um
outro motivo, inimaginável numa situação dessas. Ele se escondeu por
ter
medo
e não vergonha necessariamente. Por que então na mente do
homem o fato de estar nu inspira
medo
e não
vergonha
?
O Altíssimo impõe diversas punições a Adão e Eva.
Ok, vamos pensar
um pouco nessas punições. Nós poderíamos esperar creio eu, que as
punições impostas por um D-us justo e onisciente se ajustem de alguma
forma ao crime cometido. Deveria haver alguma correspondência lógica
entre o que a pessoa fez de errado e as punições que deveria suportar.
Mas que tipo de conexões podem haver entre crime e castigo em nosso
relato? À primeira vista, parece que o Altíssimo simplesmente abriu sua
valise de conseqüências e aleatoriamente passou a distribuir relâmpagos
para todos os lados. “Vejamos, Adão. Você será aquele que vai suar a
camisa para retirar da terra o seu sustento. À partir de agora, acabou a
48

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moleza, pois você terá que trabalhar duro para semear e colher da terra.
Eva? Ok, você é que gera filhos... então, vamos tornar isso tudo um
pouco mais difícil para você. E a serpente? Você vai rastejar sobre seu
ventre e deverá comer pó, e haverá eterno ódio entre a sua
descendência e aquela de Eva. Bem, e no mais, morte para todo mundo;
ninguém poderá mais viver para sempre. E só mais uma coisinha: Exílio.
Todo mundo para for a da piscina!”
Bem, finalmente parece que estamos aptos a responder todas essas
questões. Tendo visto as conexões da história e todas as suas nuances, nós
finalmente poderemos entender os outros fatos posteriores ao fato de Adão e
Eva terem experimentado daquele fruto: A estranha pergunta de D-us (“Onde
estás?”); o foco de Adão não exatamente sobre a vergonha mas sim sobre o
“medo” de estar nu; e finalmente a distribuição aparentemente aleatoria de
punições pelas mãos do Eterno.
Nos derradeiros capítulos deste estudo estaremos tentando fazer com
que as extremidades desse enredo emaranhado se encontrem. Enquanto isso,
eu gostaria que você fizesse uma pausa antes de começar a ler o próximo
capítulo e parasse para pensar: Será que todas aquelas punições dadas por D-
us são realmente aleatórias, sem nenhuma ligação entre si como de fato
parecem? E dada à natureza da árvore como começamos a ver, por que será
que o medo da nudez pode ser exatamente a resposta que devemos esperar
de alguém que de repente acorda para dar-se conta que passou a habitar num
mundo radicalmente novo do “bem” e do “mal”? Até lá, e bons estudos.
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De V olt a a o É den
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CAPÍTULO IX
Friedrich Nietzsche e o D.J.
Há alguns anos, eu estava dirigindo pelas ruas de Nova York,
ouvindo uma estação de rádio bastante popular naquela cidade. O locutor, que
lá é conhecido por D.J (de
disc jockey
) estava oferecendo ajuda para resolver
os problemas sentimentais de seus ouvintes. Eu ouvi por alguns instantes o
que as pessoas tinham a dizer e de repente entrou na conversa pelo telefone
um jovem que pelas palavras parecia ser muito religioso e correto. Ele se
esforçava para explicar os motivos pelos quais preferiu abster-se de relações
sexuais até o casamento. O locutor debateu com ele e para minha surpresa,
saiu-se com um argumento religioso, muito apropriado creio eu, contra o
ouvinte:
“Diga-me” - inquiriu o locutor - “Você é um sujeito normal? Você
sente desejos?”. Silêncio do outro lado da linha. Após alguns instantes
continuou o locutor: “Olha, por que você acha que o S-nhor colocou esses
desejos em você se Ele não quisesse que você agisse sobre eles?”
O pobre ouvinte certamente não esperava ser atacado no campo
religioso e ficou sem resposta. Enquanto eu seguia meu caminho pelas ruas de
Nova York, fiquei pensando na situação daquele ouvinte e me senti solidário
para com ele. Percebi de repente que a serpente do Éden após todos esses
anos está bem viva e passando muito bem! O argumento que ela usou lá no
princípio é sempre atual.
“Mesmo que D-us tenha dito para que você não coma da árvore... e
daí?”
----
Assim, segundo a serpente edênica, os mandamentos de D-us, sejam
eles quais forem, não são primários. A voz verdadeira do Divino sussurra para
você de dentro para fora, através dos desejos e das paixões que o próprio D-us
instilou em nosso ser. Se esses mesmos desejos foram de fato colocados em
50

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
nós pelo nosso Criador por que então não honrá-Lo fazendo com que eles
sejam efetivos?
Através de toda a História humana, os opositores da religião têm
aprimorado este argumento em um vasto número de formas e guisas. Nos
últimos cem ou duzentos anos, um dos mais poderosos desses críticos da
religião foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, autor de uma série de ensaios
chamada “Além do Bem e do Mal”. Nesses e em outros escritos, Nietzsche
argumenta ferrenhamente contra a religião organizada do ocidente. Ele critica
em suas obras a tendência da religião ocidental de desprezar os prazeres e
alegrias “mundanos”. Segundo o filósofo alemão, a religião ocidental tende a
evitar tais prazeres como se fossem coisas a serem temidas pelo povo comum.
A paixão ele declarou, é a essência da vida. Se evitamos os desejos e as
paixões reprovamos no mais essencial teste de humanidade, deixamos de ser
humanos de verdade.
Qual então deve ser a resposta para a serpente – ou mesmo para
aqueles que advogam o argumento que ela usou no Éden para induzir o ser
humano? É correto dizer que as paixões são para os animais e que os
mandamentos de D-us são para os humanos; que os animais obedecem a voz
de D-us dentro deles e que nós obedecemos a voz de D-us que nos chega por
meio dos mandamentos- mas, como humanos, será que devemos negar as
paixões e os desejos, será que devemos eliminá-los de nossa existência como
se não fizessem parte de nós mesmos? O desejo desperta nosso senso de
estética, faz com que nós ansiemos por beleza, faz com que nos emocionemos
ao som de belas canções. Para dizer a verdade, até certa altura, Nietzsche
estava certo: Nossa apreciação dessas coisas, pelo menos em parte, é o que
nos torna humanos. No momento em que eu estiver sem nenhum desejo, no
momento em que eu anulá-lo, no momento em que eu não tiver mais nenhum
tipo de desejo, aí então eu não terei mais razão ou motivo para despertar no
outro dia. Estou na mesma condição que uma pessoa morta.
Se isso é assim, então onde foi que a serpente errou?
Para responder esta pergunta nós precisaremos recalibrar nossos
argumentos um pouco. Nós precisaremos dar mais uma olhada no que é o
desejo e ver se fato nós queremos, precisamos ou devemos afinal dispensar
seus apelativos. Afinal de contas, poderia-se argumentar que o próprio D-us é
um Ser extremamente movido pela paixão, pelo desejo, pela votade. Ele é um
Ser tão poderoso que espontaneamente manifesta-se como realidade. D-us
deseja um universo e do nada tudo passa a existir. O que poderia estar errado
com um pouco mais de paixão, de desejo, de vontade?
TORÁ E O TEMPERO DA VIDA
Há mais ou menos dezoito séculos, os Sábios do
Talmud da Babilônia
anteciparam esta linha de raciocínio e eles sugeriram uma metáfora simples
mas ao mesmo tempo intrigante que tenta penso eu, responder esta questão.
A metáfora foi escrita em hebraico e encontra-se no Tratado
Kiddushin,
30b:
51

De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
"
HaKadosh Baruch Hu amar lahem le-Israel: Beni, baratí yetzer hará
uvaratí lo Torah
tavlin
ve-im atem osekim ba-Torah ein atem
nimsarim be-yado.
A tradução:
“O Santo e Bendito Seja disse para eles (para Israel): Meu filho, eu
criei a inclinação para o mal e criei para ela a Torá como
antidoto
.
Se vos ocupardes da Torá, vós não sereis entregues na sua mão.”
À primeira vista, os Sábios parecem estar sugerindo que a Inclinação
para o Mal, a
yetzer hará,
é um problema um veneno e a
Torá
é a solução, o
antídoto – como normalmente é vertida a palavra
tavlin.
Mas, como sempre
ocorre muito se perde na tradução do hebraico para os idiomas modernos. No
hebraico original, o
Talmud
diz que o Eterno criou a
Torá
como
tavlin
para a
Inclinação para o Mal. A maioria dos tradutores vertem essa palavra como
“antídoto” (“Se vocês tomarem dessa antídoto [i.e., a
Torá
] vocês não serão
entregues nas mãos da Inclinação para o Mal”). Esta tradução parece até que
se ajuste ao contexto da passagem talmúdica, mas na verdade, não é
exatamente isso que o texto quer dizer. Se você for a Israel hoje e visitar o
famoso antigo mercado de Jerusalém e pedir
tavlin
você certemente não será
encaminhado à seção de ervas medicinais. Em vez disso, os atendentes
mostrarão para você maços de cebolinha verde, menjericão, salsa, pimenta-
do-reno etc. A verdade é que o termo
tavlin
significa “especiaria, tempêro”.
Bem, esse sentido de “tempêro” muda bastante as coisas. Mas se a
palavra
tavlin
significa “tempêro”, o que será que os Sábios do
Talmud
queriam
dizer com isso? O que eles queiam dizer ao afirmar que a
Torá
é o “tempêro”
da Inclinação para o Mal?
Em que tipo de coisa você coloca tempêros? - Bem, colocamos
tempêro em carne, em comida em geral. Intreressante isso! A Inclinação para
o Mal é “carne”. Que modo diferente de se encarar as coisas! Se você estivesse
preso numa ilha deserta e pudesse escolher entre uma provisão anual de carne
e têmperos, qual seria sua escolha? Bem, eu arriscaria supor que a maioria de
nós escolheria carne. O tempêro é bom, mas ninguém pode viver à base
unicamente de tempêro! A carne por outro lado, é “combustível”, a carne nos
fornece energia para viver.
À primeira vista, parece surpreeendente e até blasfemo pensar dessa
forma. Como ousa dizer que a Inclinação para o Mal é mais “essencial” de
alguma forma do que a própria
Torá
? Mas, antes de tirar conclusãoes
apressadas, espere e pense no que os Sábios afirmam naquela passagem do
Talmud,
pois não é só a palavra
tavlin
que desafia os tradutores --- temos
ainda a expressão “Inclinação para o Mal”, que é também em si mesma um
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
grande desafio para a nossa correta compreensão. Como normalmente
traduzida, a expressão parece ser um conceito extremamente passível de ser
mau compreendido.
O que exatamente é a concepção de “Inclinação para o Mal”? Será
que é o chamado “lado escuro da Força”? Será que é alguma espécie de diabo
de chifres com tridente e brilhantes vestes vermelhas? Será que trata-se de
alguma espécie de anjo caído que volta e meia fica sussurrando ao nosso
ouvido maus conselhos por não ter mais nada interessante para fazer? É difícil
mesmo escapar de oscuras e sinistras idéias metafísicas e até
vergonhosamente infantis quando pensamos sobre a “Inclinação para o Mal”.
Mas, na nossa “vida real”, no mundo tangível, o que isso significa? O que
queremos dizer quando mencionamos a “Inclinação para o Mal”?
Se mudarmos a linguagem dos Sábios do
Talmud
para a linguagem
moderna da psicologia nós poderíamos dizer que a “Inclinação para o Mal”
nada mais é do que nossas paixões, desejos e inclinações. Na verdade,
podemos ir até um pouco além. Em hebraico, a expressão “Inclinação para o
Mal” é
yetzer hará.
A raiz da palavra
yetzer
é y-tz-r [
] que
fascinantemente significa “formar, moldar, plasmar”, e em resumo, “criar” (à
partir de algo). Se traduzirmos a expressão literalmente teríamos algo como
(prepare-se!): O ímpeto para criar de forma errada ou ainda, a criatividade do
modo errado.
Nossas paixões constituem-se na força que nos move. Nosso ímpeto
de criar é uma espécie de “motor” que nos faz andar e viver, é em essência um
dos mais profundos e fundamentais princípios da vida. Na verdade essa
habilidade de criar surge de diversas formas em nossa experiência diária:
através da sexualidade, da arte, das novas idéias e invenções, da ambição –
todas essas coisas são formas externas, exteriorizações ou “válvulas de
escape” que dão vazão à todas as expressões da criatividade humana. O
Talmud
séculos antes de Freud e Nietzsche antecipava que tais forças são
essenciais para nossa condição de seres humanos. Sem essa “energia criativa”,
sem essa “carne”, ou você não é humano ou está morto.
Mas, o
Talmud
parece dizer que a “carne” pode levar um pouco de
“tempêro”. Vamos pensar um pouco nisso. O que o tempêro pode fazer com a
carne? O tempêro faz com que a carne tenha sabor, ele dá uma nova “direção”
para a carne, faz com que ela tenha sabor desta forma e não daquela outra.
Sem nenhum tempêro, a carne não tem sabor; mas, com o tempêro
apropriado, torna-se no prato dos reis. Isso explica porque os Sábios do
Talmud
afirmam que a
Torá
é o
tavlin,
o tempêro da Inclinação para o Mal. A
Torá
dá à essa nossa inclinação natural uma nova direção, a direção
apropriada. A
Torá
dá a direção correta aos nossos desejos, paixões e ímpetos.
A sexualidade, a ambição, a vontade, a imaginação, a criatividade – todas
essas coisas são o nosso “combustível”, aquela força que nos anima e nos faz
agir. É tentador para certas religiões e filosofias olhar com certa desconfiança
para essas inclinações e reprová-las, fazendo com que seus seguidores passem
a rejeitá-las. O
Talmud
não concorda com essa visão. Segundo esse vasto
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De V olt a a o É den
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compêndio de sabedoria, o temível poder das paixões e dos desejos não deve
ser suprimido – não precisamos tirar o motor do carro, não precisamos
renunciar a “carne” e morrer de fome. Não – a
Torá
não tem como objetivo
extingüir as nossas paixões, nossos desejos, nosso poder criativo
.
A função da
Lei Divina é por outro lado de complementá-los e orientar a correta vazão de
todos esses aspectos de nosso ser; A função da
Torá
é basicamente prover
“sabor” aos nossos desejos, temperá-los, direcioná-los aos fins produtivos,
guiá-los em direção à objetivos válidos e sagrados. Alimente seus desejos, sua
ambição, sua sexualidade, sua criatividade ---- e não os destrua, é o que nos
diz a
Torá.
Mas direcione essas inclinações para este objetivo e não para
aquele outro. Oriente-os e não se deixe orientar por eles – esta é a regra.
O ADVENTO DO DESEQUILÍBRIO
Houve um tempo em que essa tarefa de orientar nossos desejos não
era tão difícil como agora parece ser. No mundo anterior à árvore do
conhecimento, quando a paixão e o intelecto estavam mais naturalmente
equilibrados, a clareza moral era mais fácil de ser percebida pela mente
humana. Nós podíamos tomar decisões com uma visão sem interferências,
sem o temor de que nossos desejos pudessem distorcer o panorama moral,
sem nos preocuparmos com a possibilidade de que a vontade de nosso Criador
pudese ser sutilmente corrompida por nossas paixões, por nosso ímpeto de
criar.
Mas o mundo mudou – e nós mudamos após termos comido do fruto
daquela árvore. Após termos partilhado daquela árvore misteriosa, daquela
fonte dos desejos, nós passamos a perceber que o “motor” que nos move é
muito mais poderoso do que poderiamos jamais imaginar. Sim, a bem da
verdade, essa grande força que estava em nós foi plenamente conhecida e ela
nos fez seres maiores, mais semelhantes ao Criador, como o próprio D-us:

Sereis como D-us, conhecedores do bem e do mal
” (Gênesis 3:5)
Mas, foi aí que surgiu o grande problema: A humanidade trocou o seu
“motor” por outro ainda mais poderoso – mas o pior é que fomos deixados
com o mesmo “volante” com a mesma direção que tínhamos antes, ou seja,
nosso intelecto. O delicado equilíbrio entre as paixões e o intelecto foi alterado.
No mundo posterior à árvore, Adão e Eva – todos nós – fomos deixados no
meio de uma luta a fim de resolver o maior dilema de nossa existência: Como
orientar um poderoso “motor” fazendo uso de um intelecto pequeno, limitado e
incompatível com a potência dessa nova “máquina”?
UM MEDO RECÉM-DESCOBERTO
Agora, leiamos nossa história pela última vez, atentando para o que
acontece logo após Adão e Eva terem comido da árvore proibida. Pouco depois
de ter comido do fruto proibido, Adão ouve “a voz de D-us que caminhava pelo
jardim” e ele se esconde, agora ciente de que estava nu. É interessante notar
que foi o simples
ato de ouvir
a voz de D-us – não algo que D-us tenha dito
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
em particular – mas sim, a
consciência
de ter ouvido Sua voz pelo jardim que
fez com que Adão ficasse ansioso.
Tendo recentemente cedido ao jogo da serpente, tendo aceitado a
idéia de que D-us fala conosco por meio dos instintos ou através de uma voz
dentro de nós mesmos, o fato de Adão ter ouvido a voz de D-us vindo de for a
deve ter sido algo especialmente amedrontador. Constituía-se numa evidência
insofismável de que D-us de fato nos fala por meio de palavras, que Suas
expectativas em relação a nós vão muito mais além do que imaginamos ao
cedermos à esse nosso “motor” (os desejos), deixando que ele nos guie para
onde bem entender.
A ansiedade de Adão toma forma de desconforto pela sua nudez. É
interessante insistirmos na idéia de que Adão não estava envergonhado (como
esperaríamos de alguém que de repente se vê nu em público); antes, a
sensação que tomou conta dele foi o medo:

Tive medo porque estava nu e me escondi
” (3:10).
O medo está muito longe da vergonha. Eu fico envergonhado quando
cometo uma gafe em público, mas tenho medo de algo que percebo ser maior,
mais forte do que eu, de algo que noto estar fora do meu contrôle – enfim,
tenho medo de algo que pode me controlar e me subjugar. Antes de comer da
árvore, Adão estava bem consciente de sua nudez – só que ele não a temia. A
sexualidade no mundo anterior à árvore era considerada parte natural da vida,
por que então preocupar-se com roupas? Agora, entretanto, a mesma
sexualidade, nosso ímpeto biológico de criar era infinitamente maior,
manifestava-se com maior intensidade, tornara-se ameaçadora. Agora a
nudez, a confrontação direta, desbloqueada, com nossa própria sexualidade
torna-se fonte de medo, de temor.
Estas paixões recém-descobertas, este ímpeto de ciar – tudo isso
pode ser divino --- mas ao mesmo tempo, tudo isso pode ser intoxicante; essa
força pode subitamente tomar conta de mim. Como então guiar um “motor”
tão temível e poderoso quanto esse que acabamos de descobrir?
O PREÇO DO PODER
Depois que Adão e Eva comeram do fruto proibido, D-us lhes impõe o
que parece ser uma série de punições aleatórias. Morte, dores de parto,
trabalho penoso, a serpente passaria a rastejar e comer pó. Mas será que
todas essas punições são tão aleatórias quanto parecem? Será que elas não
seguem uma lógica ou não apresentam nenhuma coerência?
Vamos começar com a serpente. Adão e Eva forma iludidos por uma
serpente que falava, que andava. Bem, serpentes não falam e provavelmente
jamais falaram; serpentes não andam e provavelmente jamais andaram ---
sempre rastejaram.
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Logo, do que falamos aqui? De qual “serpente” falamos aqui?
Diversas referências bíblicas comparam as atitudes do ímpio com as atitudes
de uma serpente:
“Alienam-se os ímpios desde a madre; andam errados desde que
nasceram, proferindo mentiras. Têm veneno semelhante ao veneno
da serpente; são como a víbora surda, que tapa os seus ouvidos”
[Salmo 58:3-4; veja também Salmo 140:2-3]
A
Tanach
classsifica como “ímpio” ou pecador todo aquele que cede
aos seus desejos e paixões, nunca direcionando-os da forma correta para o
alvo determinado por D-us. Sendo assim, a serpente é um símbolo mais do
que apropriado para nossas paixões, vontades e desejos. No Éden, a mulher
ouve a voz da “serpente” e cede à mesma (note que Adão não é mencionado,
pois é Eva quem dialoga com a serpente). Razão e emoção fazem parte de
nosso ser, e a parte que cede ao desejo e às paixões é certamente a emoção, e
Eva é um símbolo mais que adeqüado ao nosso eu emocional, por ter ela
cedido aos apelos da “serpente”.
Indo ainda mais adiante, vemos que Adão “ouve a voz de D-us” no
jardim, e se esconde (apesar de mencionar ambos, o verbo hebraico aparece
no singular – vide Cap. IV “A verdade nua”, subtítulo: “A estranha
proeminência da nudez”). Ao ser interrogado por D-us, Adão responde (no
singular): “Tive medo porque estava nu e me escondi”. Somente o nosso eu
racional pode “ouvir a voz de D-us” e dar-se conta do estado em que nos
encontramos; logo, Adão é o modelo perfeito da consciência, do racional.
A pena aplicada à “serpente” é rastejar e comer pó. A mulher por sua
vez, deve ter sua vontade sujeita a Adão [Gênesis 3:14 e 16] . Se atentarmos
para esses dois casos, notaremos que ambas as penalidades são idênticas, são
na verdade uma só.
Nossos desejos [a “serpente”] devem estar um nível abaixo de nós
[“rastejar”], e nossa emoção [“Eva”] dever ser subjugada, dominada pela
razão [“Adão”]. Logo, sinto desapontar, mas nenhuma referência que possa
agradar aos machistas-chauvinistas aqui pois nossa passagem é totalmente
alegórica.
D-us afirma que colocaria inimizade entre a semente da “serpente” e
aquela da “mulher”, o que significa o contraste entre os desejos e as emoções
e a luta que todos teríamos no futuro para subjugar nossas paixões quando as
mesmas apelam não para o nosso aspecto racional, mas sim, para a parte
mais frágil de nosso ser – o nosso eu emocional. A semente da mulher feriria a
serpente na cabeça (i.e., obteria sucesso na tentativa de subjugar seus
desejos) mas não sairia totalmente incólume nesse novo mundo ainda não
desbravado do pós-árvore do conhecimento, pois sairia ferida no calcanhar,
uma alusão aos revéses que sofreríamos aqui nessa nova realidade. A
Tanach
está repleta de exemplos de pessoas que obtiveram sucesso nessa empreitada
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
espiritual, mas que vez ou outra, acabaram sendo feridas no calcanhar pela
serpente (Abraão, Davi, Ezequias etc). O Salmo 91 afirma entretanto que
aquele que habita no esconderijo do Altíssimo poderá finalmente e em
definitivo calcar aos pés a serpente [v. 13], isto é, subjugará suas paixões e
desejos orientando-os em conformidade com a vontade do seu Criador.
Apesar da essência alegórica de nossa passagem ela também tem
certos aspectos reais, tangíveis. Aquilo que poderíamos ver como uma punição
da parte de D-us em relação ao sexo feminino, i.e., a geração de filhos em
meio à multiplicação de dores pode ser visto na verdade como mera
conseqüência desse novo estado de consciência. Voltemos à analogia do motor
e do volante: Imagine que você acaba de adquirir um carro construído por uma
montadora extremamente competente. Esse carro funciona perfeitamente e
todo o conjunto está em perfeita harmonia. Se não houver nenhuma fricção
entre as partes do carro, por quanto tempo ele vai durar? Bem, ele deverá
durar para sempre.
Certo, mas e se... e se você quiser acrescentar mais força ao motor,
se trocar o 4 cilindros original por um potente V8... Bem, agora você tem mais
potência em sua máquina, mas a certo custo. A harmonia se foi. Internamente
a fricção entre as partes aumentou e surgiu o desequilíbrio entre elas,
causando um desgaste maior do que o natural. Algum dia, o sistema todo
entrará em colapso.
Esse desequilíbrio causado pela intromissão de uma nova e tremenda
força inteiror que tenta nos dominar passou a afetar o nosso “sistema”.
Adquirimos mais intensidade em tudo o que desejamos, nossa vontade e poder
de criação passou a agir com maior intensidade mas de forma um tanto
desordenada e um tanto diferente da original. Todo nosso ser foi afetado. O
desequilíbrio tornou-se físico e emocional, hoje geramos e criamos filhos em
meio à dores e tribulações, hoje trabalhamos duro em “solo improdutivo” que
nos produz “cardos e espinhos” --- figura adequada para o trabalho penoso e
que não traz muita satisfação. Essa realidade só será definitivamente mudada
quando da restauração de todas as coisas ao seu estado natural, primitivo:

Não trabalharão em vão, nem terão filhos para calamidade
;
porque serão a descendência dos benditos do Senhor, e os seus
descendentes estarão com eles”.
[Isaías 65:23]
Hoje em dia, a humanidade sente a falta de harmonia de outras
formas também. Nós nos percebemos não sincronizados com todo o restante
da Criação. No passado, o mundo natural fornecia ao homem tudo o que ele
precisava, sem esforço algum. Agora, o homem deve buscar o seu sustento do
solo e com o custo do suor do seu rosto – e além disso, o mesmo solo de onde
ele fora tirado lhe é contrário, poduzindo ervas daninhas que o tornam
improdutivo!
No passado, estávamos em harmonia com o mundo a nossa volta.
57

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Agora, quando um
tsunami
avança silenciosamente em direção à praia, é o
mundo animal que sente por instinto que algo estranho está para acontecer, e
assim, os animais buscam abrigo em lugares mais altos. O homem por outro
lado, permanece enclausurado no seu próprio mundo, de férias na praia –
alienado do resto da Criação, alheio ao sutil clamor do mundo natural ao seu
redor.
Hoje em dia, a humanidade não está mais em harmonia consigo
mesma, e também não está em harmonia com o mundo criado para ela.
Sofremos a “morte” no exato dia em que comemos do fruto proibido, pois a
“morte” que nos foi imposta no Éden não é a morte física tal qual a
conhecemos mas é isso sim, o simbolo perfeito dessa alienação, desse “exílio”¹
que impusemos a nós mesmos – fomos “expulsos do Éden”, exilados de nossa
primitiva condição, sofremos assim a “morte” a qual D-us fez referência
quando deu a ordem:
“mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não
comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”
Estamos nos aproximando do fim de nosso estudo sobre o Éden. No
próximo capítulo, abordaremos a aparente pergunta desnecessária feita pelo
Eterno: “Onde estás?”. Uma olhada na passagem em hebraico irá sem dúvida
alguma revelar as impressionantes domensões dessa pergunta, incluindo a
possibilidade de que a mesma nem tenha sido essencialmente uma pergunta,
mas sim, algo muito mais surpreendente.
Até lá.
Referências:
¹
morte
= referências à morte como “exílio” ou saída forçada Salmo 107:10-14/Ezequiel
37/Oséias 13:14-16
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CAPÍTULO X

Onde estás?” - A primeira pergunta da História
“Onde estás?” - D-us chama Adão após ter ele comido do fruto
proibido. Nós perguntamos no começo por que D-us faria tal pergunta sendo
que Ele naturalmente já sabia a resposta. Está na hora de revermos esta
questão. Primeiramente, é bom saber que há duas palavras que significam
“onde” no hebraico bíblico. A mais comum delas é
eifo
- mas, essa não é a
palavra que D-us usa ao chamar o homem. Em vez disso, o Eterno usa a
palavra menos comum,
ayeh.
Há diferenças entre os sentidos dessas duas palavras, e se de fato
há, como podemos entender quais são elas? O modo de se resolver esse
mistério não é consultar um dicionário, afinal de contas, como os autores do
dicionário descobriram tais diferenças? O melhor a se fazer é consultar uma
concordância, um livro que traz todas as ocorrências de certa palavra na Bíblia.
Se pudermos identificar quando e em que contexto a Bíblia usa as palavras
ayeh
e
eifo,
então torna-se possível ligar os pontos e entender o sentido único
de cada palavra.
Como estamos muito dispostos hoje, vamos poupar-lhes o trabalho
penoso de percorrer sua concordância bíblica em busca daquelas palavras. Vou
dar-lhes alguns exemplos de onde especificamente essas palavras (
ayeh
e
eifo
) ocorrem na literatura bíblica e deixar que você tire suas próprias
conclusões.
Alguns exemplos com “
eifo
”:
a.
Hagidah na li
eifo
hem ro'im -
“Dizei-me por favor
onde
eles estão
apascentando...

(José, em relação ao paradeiro de seus irmãos), em Gênesis
37:16).
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b.
Eifo
likatit hayom?
- "Onde colhestes hoje?” (Naomi para Rute) em Rute
2:19).
c.
Eifo
Shmuel ve-David?
- "Onde estão Samuel e David?” (Rei Saul buscando a
David) em I Samuel 19:22.
Alguns exemlos com “
ayeh”
:
a.
Vayigva adam ve-
ayeh
? -
"O homem rende o espírito e
onde
está?” (Jó
14:10).
b.
Hineh ha'esh...ve-
ayeh
ha'seh le-olah? -
"Eis aqui o fogo...mas onde está o
cordeiro para o holocausto?" (Isaque para Abraão, subindo o Monte Moriah) em
Gênesis 22:7).
c.
Ayeh
na Eloheihem
? - "Onde estão seus deuses?" (Em referência aos ídolos)
no Salmo 115:2).
d.
Le'imotam yomru
ayeh
dagan ve-yayin? -
“Para suas mães (os filhos
famintos) dirão: Onde está o cereal e o vinho?” (Lamentações 2:12).
Bem, o que você conseguiu captar disso tudo? Gostaria de dar-lhes
um ou dois minutos de reflexão a fim de verificar se podemos isolar um
denominador comum em cada série de citações.
Ok, vamos lá então. Prontos ou não, eis aqui o que eu percebo
dessas citações.
Eifo
é uma palavra mais genérica para dizermos “onde”. Isto
quer dizer que
eifo
é uma expressão usada quando desejamos saber a
localização de algo ou alguém. Assim, José por exemplo, só deseja saber onde
estão seus irmãos; Naomi quer saber simplesmente onde Rute colheu naquele
dia e o rei Saul quer saber qual o paradeiro de seu rival, David.
Agora, consideremos a palavra
ayeh.
Como poderemos verificar ao
usar esta palavra a pessoa não está querendo saber a localização de alguma
coisa. Como exemplo, note a nossa última citação de Lamentações 2:12. As
crianças na verdade não desejam saber onde se encontram o cereal e o vinho,
até porque elas sabem que não há nenhum cereal ou vinho, pois a ênfase do
livro de Lamentações é o cerco de Jerusalém em 606 aEC e os sofrimentos e
penúrias que o povo judeu passou naquele triste momento de sua história,
quando houve uma séria escassez de alimentos. Dessa forma, os filhos
exclamam em agonia: Onde estão o cereal e o vinho que tínhamos antes em
abundância?
Temos algo parecido quando Isaac pergunta ao seu pai: “Mas onde está o
cordeiro para o holocausto?

A ênfase de Isaque não está no fato de que ele
não consegue achar o cordeiro – sua ênfase está no fato de que não há
60

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nenhum cordeiro para ser achado! Deveria haver um cordeiro ali para o
holocausto, mas não há. Pelo fato de que a palavra
ayeh
tem esse sentido
único, a expressão usada pelo patriarca nos passa um vasto espectro
emocional: É nesse momento que Isaac passa a perceber que já que não havia
nenhum cordeiro ali, ele talvez fosse o objeto do sacrifício!
Em resumo, quando usamos
ayeh
nós não estamos querendo saber
onde algo se encontra; estamos na verdade expressando surpresa pelo fato de
que algo que deveria estar ali não está; algo está faltando quando deveria
estar na posição esperada.
Isto então muda drasticamente o sentido da pergunta que D-us fez
para Adão. O Altíssimo não está perguntando: “onde você está?” no sentido de
que Ele não sabe o paradeiro do homem. Em vez disso, Ele está dizendo, “Para
onde você foi? Por que você não está aqui (desse lado onde deveria estar)”.
Em suma, D-us está lamentando a posição tomada pelo homem, como
afirmam os Sábios no
Midrash
:
“Ontem você estava aqui comigo e meu conhecimento; agora, você
está com o conhecimento da serpente” (
Midrash Bereshit Rabbah
19:9)
Ayeh
é o tipo de pergunta que você pode fazer mesmo quando sabe a
localização das coisas ou das pessoas. É uma palavra muito mais triste e
melancólica do que
eifo.
Numa estranha coincidência, a forma de
ayeh
(“onde”) usada por D-us em Gênesis 3:9 [ayekah] escreve-se da mesma forma
que a palavra que expressa toda a dor e o lamento de Jeremias ao contemplar
Jersualém desolada. O profeta usa a palavra
eichah
.
Eichah
yashvah vadad ha-ir
(
Como
encontra-se solitária a cidade...) Lamentações 1:1
Va-iykrá Ad-nay Elohim el ha-adam va-yomer “
ayekah

(E chamou o S-nhor D-us ao homem e disse,
onde
estás
?) Gênesis 3:9
Compare a primeira palavra hebraica de Lam 1:1 com a última de
Gên 3:9, ambas em destaque azul. Notou como elas são idênticas quanto à
forma de escrita?
Em Lamentações, diz Jeremias: “Como encontra-se solitária a
cidade...” - O profeta chora ao contemplar Jerusalém destruída, solitária e
desolada relembrando das grandes multidões que para lá afluíam nos dias das
festas sagradas e que agora foram levadas para além de Babilônia. Adão e Eva
foram também “exilados” e a expressão usada por D-us assim como a usada
por Jeremias tem mais a ver com lamento do que com uma pergunta em si,
um lamento que expressa toda a tristeza divina ao contemplar a separação
causada pelo ato de comer do fruto do conhecimento.
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Eu trouxe Adão ao Jardim do Éden e dei-lhe ordens, as quais foram
desobedecidas. Eu então decretei exílio para ele e ao partir, Eu
lamentei “ayekah” [
]. E assim foi com os seus filhos. Eu os
trouxe para a Terra de Israel e dei-lhes ordens, as quais eles
desobedeceram. E então decretei exílio para eles e ao partirem, Eu
lamentei “eichah” [
]
(
Midrash Bereshit Rabbah 19:9).
DONS GÊMEOS
Nossa história no Jardim do Éden termina com dois atos finais.
1) O Altíssimo confecciona vestes de pele animal para ambos, a fim
de substituir o tipo mais primitivo de vestimentas feitas de folhas das
árvores.
2) Após expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden a fim de que eles não
comessem da árvore da vida, D-us posiciona anjos querubins com
espadas flamejantes para guardar o caminho de volta àquela árvore.
De uma forma estranha, mas bastante pertinente, esses dois eventos
estão intimamente relacionados. Nós percebemos que os querubins aparecem
só duas vezes em todos os cinco livros de Moisés. Além da referência no Éden,
a única vez que o termo é usado é na ordem dada a Moisés para que se fizesse
dois querubins de ouro, como ornamento para a arca da aliança. Na arca,
como sabemos, guardava-se além de outros objetos sagrados, as tábuas da
Lei, símbolo da aliança divina com Israel as quais estariam protegidas pelos
querubins postos sobre a tampa da arca, chamada de
kapporet
[propiciatório].
Apropriadamente, o Livro de Provérbios descreve essas tábuas ou a
Torá
que
elas representam como outra “árvore da vida”, uma árvore da vida para todos
aqueles que se apegam a ela (Provérbios 3:18). Assim, os mesmos querubins
que antes vigiavam o caminho de volta para a árvore da vida são os mesmos
que agora nos dão acesso à uma outra “árvore da vida”. Alguns capítulos atrás
nós questionamos o por quê disso e nos perguntávamos em que sentido a
Torá
pode ser vista como uma “árvore da vida” substituta.
A resposta para essas questões devem ser evidentes agora. Após
obterem o conhecimento do bem e do mal, a humanidade tornou-se mais
“divina”, mais passional, mais desejosa, mais intensamente criativa.
Mas nós nos tornamos apenas “semelhantes” a D-us, o que não quer
dizer que sejamos Ele! Ser verdadeiramente divino significa não ser apenas
passional, ser imbuído de desejo como D-us é. Isto significa não apenas criar
como D-us cria, mas sim, manejar sabiamente a temível força que tal ato
encerra; Significa controlar plenamente as forças e tendências de nossa
natureza e não sermos controlados por elas; Significa também manter o
equilíbrio das paixões, significa perceber que há tempo determinado para se
criar e tempo de parar de criar.
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
Após comermos da árvore do conhecimento, após termos ampliado o
papel da paixão em nossas vidas, viver eternamente não era mais o que o
médico ordenou para a humanidade. A vida eterna resume-se na presença
constante de D-us em nossas vidas. Assim, após a proibição do acesso àquela
primitiva árvore, deu-se o caso de que o homem necessitava de alguma árvore
da vida substituta, a fim de que o equilíbrio fosse restaurado e a harmonia
pudesse prevalecer na
psiquê
humana. A nova árvore da vida foi projetada
para ajudar o homem a lidar com um mundo totalmente novo, um mundo no
qual as paixões poderiam obscurecer o olho da mente, dificultando nossa
percepção daquilo que de fato é certo, genuíno e daquilo que realmente é mau
ou incorreto. Os anjos que outrora barravam o acesso de nossos primitivos
pais à árvore da vida primeva são os mesmos que agora nos abrem o caminho
em direção à uma outra, graciosamente oferecida por D-us. A
Torá
é o guia
para fazer a vontade de D-us, uma ferramenta que pode ajudar o homem a
distingüir os impulsos de sua própria criatividade das profundas convicções
mantidas pelo seu Criador. Ao consumir do fruto dessa árvore da vida, ao
assimilar o ponto de vista da Torá, o homem recebe uma nova e potente
direção, que o habilita a manejar o seu novo “motor”, fazendo dele um ser
plenamente divino.
Agora, pare e pense por um momento para contemplar o que
aconteceu aqui. Mesmo quando D-us nos baniu do Éden, mesmo quando
naquele momento que nós parecíamos mais rejeitados, Ele nos imbuiu de
ferramentas apropriadas para este bravio mundo novo, que afinal de contas,
nós mesmos “criamos”.
Vamos pensar agora no segundo ato divino, quando o Eterno faz
vestes para Adão e Eva. No mundo que D-us previra para o homem, não
haveria necessidade de roupas; Elas seriam supérfluas. Não foi escolha de D-
us que o homem vivesse num mundo em que a nudez fosse algo que devesse
ser temida ou evitada. Todavia, nesse momento de profunda decepção, o
Eterno providencia roupas para Adão e Eva, dando-lhes as ferramentas para
que o ser humano pudesse iniciar sua nova caminhada nessa nova realidade e
posição que ele mesmo escolhera.
AS ROUPAS DE ADÃO E A SEPULTURA DE MOISÉS
Os Sábios do
Midrash
afirmam que a
Torá
começa com um ato de
misericórdia e termina com outro ato de misericórdia. O primeiro ato de
misericórdia refere-se ao ato divino de fazer roupas para o ser humano e o
último ato de misericórdia refere-se ao sepultamento de Moisés, feito pelo
próprio D-us de acordo com a
Torá,
quando o Grande Legislador encontrava-se
sobre o Monte Nevo, contemplando a Terra Prometida, sem no entanto colocar
seus pés ali.
Em ambos os casos, as coisas não saíram muito em conformidade
com o que D-us planejara para Suas criaturas. Era de se esperar quando se
cria seres com livre arbítrio. Adão e Eva desapontaram D-us quando comeram
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De V olt a a o É den
De V olt a a o É den
daquela árvore e como resultado eles foram banidos do Éden, devendo morrer
em solo estranho. Moisés por sua vez, também desapontou o Altíssimo ao ferir
a rocha e como resultado ele não pôde entrar na Terra Prometida, devendo
morrer às suas portas, em pleno deserto. Em ambas os exemplos, o homem
escolheu fazer sua própria vontade e não a do seu Criador. E como resultado
de ambos os eventos, o homem deixou para trás o mundo ideal que D-us
tinha-lhes preparado, trocando esse mundo por outro, de solo desconhecido.
A reação divina em ambos os casos é a mesma. Ao sepultar Moisés
num momento em que não havia ninguém mais presente para fazê-lo, Ele
pessoalmente providenciou ao Legislador o meio de transição deste mundo
para outro. Esta transição dar-se-ia ainda no futuro caso a vontade de D-us
tivesse sido feita. E ao providenciar as “roupas” apropriadas para Adão e Eva,
o Eterno lhes concedeu um meio de transição do mundo do Éden [o ideal
divino] para um novo mundo que o homem mesmo criou e escolheu. Caso a
vontade divina tivesse sido feita também nesse caso, essa transição não se
daria assim de forma tão abrupta e inesperada.
A realidade clara é que os seres que possuem liberdade de escolha,
livre arbítrio, nem sempre correspondem às expectativas de seus criadores. Se
isso é assim conosco, o mesmo também é com D-us. Nós temos filhos mas
eles têm vontade própria e livre escolha – suas escolhas nem sempre
correspondem às nossas expectativas. Uma lição que levamos dessa série de
estudos sobre o Éden é que quando talvez nossos filhos nos desapontam,
quando eles fazem escolhas que não aprovamos, quando eles trocamm o
“mundo” que nós cuidadosamente preparamos para eles por um mundo dúbio
que eles mesmos criam – talvez nós também após todas as conseqüências
tenham sido medidas, após todas as palavras tenham sido ditas, e após todas
as angústias tenham sido absorvidas talvez nós também tenhamos forças para
preparar-lhes roupas para essa sua nova jornada, ou seja, talvez consigamos
muní-los de instrumentos e ferramentas apropriadas para a árdua tarefa de
desbravar essa sua nova realidade.
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